Um bilhete só de ida

Cinco anos de Companhia Mascarenhas-Martins, dos quais quatro de actividade pública. Duas garagens emprestadas para servirem de armazém, uma completamente cheia, a outra quase. Sete espectáculos de teatro, quatro concertos, 14 conversas, quatro leituras encenadas, num total de 142 sessões para aproximadamente 8.000 espectadores, mais um documentário, um livro e um podcast. 64, já agora, é o número de pessoas que já colaboraram nas nossas produções.

Os números é que interessam, não é? Então pronto, cá estão. O problema é que não dizem grande coisa: tornam igual o que foi diferente, abstracto o que foi concreto, impessoal o que só se conseguiu fazer pela força de vontade deste conjunto de pessoas – um grupo da mesma dimensão e com características aparentemente semelhantes teria desenvolvido outro tipo de trabalho com diferentes consequências. Não quero com isto dizer que foi tudo um êxito, que todas as opções foram acertadas. Nada disso. Aliás, parece-me cada vez mais absurda esta lógica de ocultar as dificuldades, como se só merecesse ser exposto aquilo que é sem mácula. «Nunca conheci quem tivesse levado porrada / Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo», escreveu Álvaro de Campos, a.k.a. Fernando Pessoa (ou vice-versa). Aqui nada foi perfeito, foi sempre uma luta com resultados variáveis – às vezes melhores, outras piores, entre êxitos moderados e fracassos.

Experimentámos de tudo um pouco, o que é uma boa forma de conhecer melhor a vida. E, sobretudo, trabalhámos muito, de formas bastante diversas, com muita gente – pessoas com décadas de experiência, profissionais nos primeiros anos de trabalho e até pessoas que se estrearam.

Entretanto quase todas as expectativas que tínhamos foram destruídas. Desiludimo-nos com frequência, por vezes ao ponto de pensarmos em desistir. É que, realmente, uma vida dedicada à cultura em Portugal não sei ainda se pode sequer ser considerada uma vida, tendo em conta a multiplicidade de trabalhos e perfis profissionais que temos de ir inventando para conseguirmos voltar ao que mais nos importa. Continuamos a não ter um espaço de trabalho (embora haja no horizonte essa possibilidade e vários amigos nos vão disponibilizando os seus espaços), nem um único profissional contratado. Paciência, digo eu, enquanto penso que talvez as pessoas de cuja generosidade temos vivido talvez não a tenham já na quantidade necessária para continuarem a acompanhar-nos. A situação é difícil também para nós, Maria Mascarenhas e Levi Martins, cujos apelidos e vidas se confundem com esta causa.

Sim, já levámos muita porrada. Mas ainda não ficámos K.O.. Temo-nos levantado, às vezes cambaleantes, com medo de voltar ao chão e ficar lá de vez, mas, vá-se lá saber porquê, continuamos a acreditar que tudo isto que fomos fazendo tem a sua importância. É teimosia, pois é, mas é também a crença de que é na cultura, entendida no seu sentido original, cultivo do espírito, que nos conhecemos melhor. E como essa possibilidade de nos irmos conhecendo através do que fazemos e do que partilhamos com os outros nos parece hoje inesgotável, é provável que tenhamos chegado ao ponto de não retorno. Cinco anos não é muito tempo, não, mas deste sítio a que viemos dar não parece possível encontrarmos o caminho de volta.

Levi Martins
Diretor da Companhia Mascarenhas-Martins