José António Contradanças
Economista / Gestor
Valha-me a poesia para não me acentuar esta tendência para “velho do restelo”. Esta vontade de acreditar num futuro promissor para a humanidade e em particular para a nossa região, que persista e não me deixe abater pela desilusão de promessas repetidas ao sabor dos ciclos eleitorais. Esta expetativa positiva de que, finalmente, chegue o desenvolvimento merecido, que traga emprego e gente nova a este território envelhecido.
Vem aí um ano novo, os turistas vêm de toda a parte na descoberta desta terra de costumes, de saberes e de sabores, com um património histórico e cultural ímpar, paraíso para os olhos e para o palato, aquecidos pela bondade do povo alentejano. Esta é uma tendência que parece afirmar-se. Por outro lado alguns investimentos infraestruturais, prometidos há décadas, começam a ter lugar, entre os quais a ligação ferroviária Sines – Caia, que pode alimentar a esperança de que o Porto de Sines sirva Madrid, indo Europa em frente. A afirmação de Alqueva também parece confirmar-se, embora fosse desejável uma diversificação maior de culturas e de preferência com uma maior retenção de valor acrescentado. Só nos falta ganhar brilho e utilidade o Aeroporto de Beja, equipamento com condições únicas tão desaproveitadas.
A bondade do povo alentejano leva-o a ser persistente em acreditar que melhores tempos virão. Tento não destoar neste sentimento, mas deixo-me abater quando tomo conhecimento de sinais dos tempos de uma sociedade pouco humanizada e solidária. Uma sociedade global onde ganhou primazia a exaltação da individualidade, de um pensamento liberal onde cada um se deve safar como pode, no ganho fácil radicado no lucro e no valor criado para o acionista, a que não importa a miséria dos povos que produzem a baixo preço em qualquer parte do planeta.
Satisfaz-me ser alentejano e cultivar a diferença. Esta mesma diferença, que acredito será um dia o que nos sustenta nos princípios e nos valores e nos faz sentir uma terra que é tão nossa. Uma diferença que é a negação deste mundo que nos vendem todos os dias: mastigado e tão igual, que nada nos diferencia em qualquer parte do globo. E a propósito desta tendência e como é hábito nesta coluna, quero partilhar convosco um poema recente, de título “Caligrafia”, que mais não é do que este sentimento de perda de identidade no que somos e no que fazemos, deixando de ter sentido qualquer ciência que analise a nossa letra, a nossa escrita, como decifrando a nossa personalidade. Um tempo, afinal, que nos vai tornando tão iguais. Sem Mais!
“Olho a minha letra que um dia há de esvanecer.
A letra que aprendemos, a que nos afeiçoámos,
que desenhámos com a nossa mão
numa cadência íntima, tão dentro de nós mesmos.
Esta letra que fala de mim no seu ar aprumado e certo,
nos espaços e no equilíbrio que a vida me foi impondo,
no desenho firme de quem precisou o seu caminho construir,
no calor e no carinho de quem aprendeu a amar
enlevado nos braços de sua mãe e nas estórias adoçadas
pela voz encantada de sua avó.
Tem esta letra também o fino inclinado
ao sabor do vento e da aventura, da liberdade
que parece querer rasgar a folha branca,
o passo miudinho de quem explora
toda a cave do seu ser e da sua circunstância.
A nossa letra é a fala de nós mesmos.
É presunção e vaidade no arabesco desgarrado
quando o papel lhe parece não chegar.
É medo onde se esconde pequena
e envergonhada, sumindo-se por entre
a pontuação do texto que não mais acaba.
Pode a letra ser redonda e apressada
a quem lhe falta o tempo para pensar,
pode ser coisa sem ser letra a que se chame escrita,
pode até ser escrita que não se entende,
letra que não é feita de letras,
riscos indecifráveis de alma escura escondida.
A minha letra, a nossa letra, caligrafia
que se perde por entre teclas batidas
tão iguais na expressão dos sentimentos,
e da vida vivida.
Um tempo formatado por uma letra universal,
incógnita, mastigada pelo desvario do passo
apressado que nos leve a um fim
sem sabermos onde chegar.
A minha letra, a nossa letra, a caligrafia
que se perde no teclado uniforme
feito para usar.”