Há dois anos que eu não como pargo

NÃO FOI de propósito, mas desta vez estivemos a ensaiar em Lisboa, o que nos levou a fazer o mesmo percurso que as personagens que estamos a trabalhar. 

Todos os dias em transportes públicos, muitas vezes naqueles horários em que o desalento começa logo por não haver lugares sentados. No espectáculo que estamos a preparar estes movimentos não aparecem, só estamos com os três amigos, André, Diogo e Raúl, em casa.

São três jovens que, como nós, têm dificuldade em aceitar que as suas vidas se cumprem neste vaivém absurdo que lá vai permitindo comprar meia dúzia de horas de liberdade por dia.

Claro que passam o tempo a desabafar e a pensar em alternativas, como muitos daqueles com que nos cruzamos nestes trajectos diários. Porém, que alternativas há? Quando até os artistas, cuja liberdade deveria ser defendida nem que fosse enquanto último reduto de um ideal de humanidade, estão cada vez mais sujeitos a regras e imposições, é difícil encontrar uma resposta.

Tudo o que é produzido tem de servir para alguma coisa, seja o turismo, uma aparência de dinâmica cultural, visibilidade mediática, ou para alimentar o exercício de demonstração de poder que é necessário para que os decisores mantenham a sua posição. 

A esperança está alhures, quiçá nos jovens que ainda não subiram a bordo desta carruagem, ou então num qualquer gesto colectivo de revolta contra esta enorme falta de sentido que torna a maioria das vidas uma carga difícil de aguentar (o que lembra Nas: «life’s a bitch and then we die / that’s why we get high / ‘cause you never know when you’re gonna go»). Das duas, uma: ou uma renúncia a entrar neste jogo, ou uma paragem abrupta e mudança de direcção.

Também não foi de propósito que recebemos exactamente nesta altura uma estagiária, Beatriz Sequeira, que nos tem acompanhado quase desde o início e decidiu fazer uma licenciatura em Mediação Artística e Cultural. 

E que por causa do seu estágio curricular acabámos por contactar centenas de alunos da Escola Secundária Poeta Joaquim Serra, no Montijo, para tentar perceber que relação é que tinham com o teatro (e, se possível, contribuir para a fortalecer). Fomos ler a primeira cena deste “Há dois anos que eu não como pargo” e conversar. 

Descobrimos que existia uma relação entre as nossas preocupações e as de muitos daqueles que ainda não tiveram de escolher o resto das suas vidas – até porque hoje nem sequer faz sentido pensar a longo prazo. Sim, fazer teatro também é isto, tornar público aquilo que, em princípio, é um assunto lá de casa. 

De repente os percursos do quotidiano misturam-se com as idas à escola e apercebo-me da diferença nos olhares: no comboio, fadiga, alienação, resignação; na escola, expectativa, medo e uma tímida vontade de que tudo mude para que o destino não signifique inevitabilidade mas sim livre arbítrio. Dou por mim e o comboio está a chegar à nossa paragem, Pinhal Novo. 

Atravessamos o Carnaval, os mesmos fatos de sempre, a rulote das farturas que conheço desde a minha infância. Centenas de pessoas na rua, diferentes olhares, entre a esperança e o desespero. «Life’s a bitch and then we die». 

Vou para casa. Amanhã às sete toca o despertador, continuamos os ensaios em Lisboa. Estreamos dia 12 de Março no Cinema-Teatro Joaquim d’Almeida, onde ficamos até dia 15. Depois vamos a Setúbal a 17 de Abril, no Fórum Municipal Luísa Todi, a Algés em Maio e a Lisboa em Junho.

À PARTE
Levi Martins
Diretor da Companhia Mascarenhas-Martins