Nada como estar em clausura para se pensar no que significa liberdade. Que se lixe a discussão sobre as comemorações da Revolução na Assembleia da República. O que interessa é que vida queremos ter depois deste período, que desafios é que nos são colocados enquanto cidadãos e que desafios devemos colocar, desde já, a quem nos representa. À escala nacional, a cultura tem sido tratada, como sempre, como um sector sem importância. Abre-se uma linha de apoio de emergência com um milhão de euros e remete-se os trabalhadores independentes para apoios miseráveis que, numa fase inicial, ameaçavam excluir todos os que, pela natureza do seu trabalho, são contribuintes intermitentes. Inventa-se um festival televisivo (TV Fest) com um orçamento de mais um milhão (como será que são calculados estes valores para se chegar sempre ao mesmo número?), tendo como lógica a ideia de que os primeiros participantes convidariam os seguintes, até chegar ao máximo de artistas e técnicos possível. Claro que tinha tudo para dar para o torto, não só porque o sector é composto por muitas áreas que não conseguem safar-se com os apoios existentes, mas também porque uma parte da população (a maioria?) não compreende porque raio é que aquele dinheiro não vai mas é para o SNS (o que é absurdo, claro, mas não me alongarei sobre o assunto para não ser apedrejado nas redes). Ainda assim, na Comissão de Cultura e Comunicação, a Senhora Ministra da Cultura revelou (sem o dizer assim abertamente, não fosse ferir mais susceptibilidades) não compreender a indignação em relação a este assunto – e nem sequer anunciou em que é que, e como, afinal, iria ser investido o tal milhão. Só espero que sirva ao menos para o período que se segue, que na cultura vai ser de uma recuperação lenta, muito difícil, uma vez que a situação antes da pandemia já era de emergência.
Liberdade, pois é, quase me esquecia. Ora, quando se fala de investimento em cultura, devia ser evidente que também se está a falar de liberdade. Não só a liberdade de criar, mas também a liberdade que é ampliada pela relação que se tem com a cultura, entendida enquanto cultivo do espírito e não enquanto mero passatempo. Quanto mais sentido crítico, mais abertura de espírito, mais conhecimento, mais sensibilidade, mais capacidade de ler imagens, sons e palavras, mais liberdade. Haverá ainda dúvidas sobre isto? Infelizmente, parece que sim, e é por isso que os profissionais da cultura são sempre sacrificados nas crises, como se o lugar que têm na sociedade fosse dispensável – ideia que permanece na opinião pública muito por culpa de decisores que, para irem ao encontro das maiorias de que tanto precisam para manter os lugares, têm muito medo de tomar decisões que possam ser menos populares, embora mais sensatas, como por exemplo a de investir seriamente na criação artística em momentos de crise ou pós-crise.
Sempre que se comemora a Revolução, eu, que não a vivi, lembro-me imediatamente das descrições que amigos me fazem da importância que as artes tiveram durante um breve período idealista que se lhe seguiu. É provável que não tenha sido exactamente como descrevem, mas parece-me sempre uma imagem promissora, a de um país que compreende que cultura é liberdade, que apoia as campanhas de dinamização, que eleva o direito à fruição e criação a direito fundamental inscrito na Constituição. Agora que vamos começar a sair deste período de confinamento, que vamos ter de reinventar a nossa vida colectiva, qual é, afinal, o valor que estamos dispostos a investir na liberdade?
À PARTE
Levi Martins
Diretor da Companhia Mascarenhas-Martins