É difícil lidar com a incerteza, com as dúvidas, com a necessidade de pensar num futuro cujas feições desconhecemos. A actividade cultural e artística, sempre negligenciada pelos poderes, nunca pensada como estrutural, estruturante, aguarda por um gesto qualquer de salvação. É evidente que nem todos os que trabalham nestas áreas estão a passar mal, mas tal como noutras actividades, não se pode medir o pulso de um sector olhando para os mais famosos, os que têm mais visibilidade, cachets mais elevados, mais público. A maioria do trabalho que se faz é quase invisível, lento, num confronto permanente com o pensamento dominante, com a falta de coragem dos decisores, com a necessidade de apresentar resultados quantitativos de uma actividade que se baseia na qualidade da relação com as pessoas.
Este momento é angustiante porque tudo parece indicar que nem uma pandemia foi capaz de colocar em causa o sistema vigente. Sim, tenho medo desse desejo de regresso à normalidade que soa apenas a negação, a varrer para debaixo do tapete a consciência do ponto em que estávamos. Não, não estava tudo bem, portanto não vai ficar tudo bem se voltarmos ao mesmo sítio. É impossível regressar, aliás, mas é como se fosse preferível viver essa mentira do que enfrentar o desafio real de inventar uma nova sociedade.
O investimento na cultura vai ser um instrumento de medição deste comportamento por parte dos decisores. Fazer cortes equivale, no fundo, a aproveitar esta pandemia para ir ainda mais longe na lógica anterior, em que só deve existir aquilo que conseguir fazer-se valer no mercado, na competição, mesmo que isso signifique destruir projectos artísticos e culturais com décadas de existência, cuja importância é incomensurável porque só se pode medir nas pessoas que transformou – e isto é tão importante para o público como para quem passa pela experiência enquanto profissional. Será possível, por exemplo, calcular a importância que o Teatro da Cornucópia teve para um actor como Nuno Lopes, que neste momento entra na série White Lines da Netflix? É o próprio que reconhece em entrevistas a relevância do lado invisível da cultura sempre que pode, mas será que alguém o ouve, será que algum ministro ou autarca compreende a ligação entre estes dois pólos?
Investir parece ser a única resposta possível, a não ser que os decisores políticos, quer estejam mais à esquerda ou mais à direita, queiram ficar ligados a uma lógica que acabou, que já devia ter terminado há muito, mas que agora temos finalmente a possibilidade de enterrar para fazer nascer qualquer coisa nova, que ainda não conhecemos. Depois deste momento será possível tolerar que não se invista nas pessoas, o que implica evidentemente investir na Saúde, na Educação, na Cultura?
A questão não diz respeito somente aos profissionais das artes e da cultura, embora qualquer acção em defesa dos mesmos seja quase sempre mal interpretada por haver esse preconceito, essa ideia de que as pessoas que trabalham nestas áreas só querem ter uma vida fácil, com apoios públicos (um grande equívoco que importa desfazer sempre que possível). Estamos a falar do tipo de sociedade que queremos construir depois desta paragem, desta oportunidade para pensar. Não é pouco. Se não for agora, quando é que teremos outra oportunidade para mudar de atitude?
À PARTE
Levi Martins
Diretor da Companhia Mascarenhas-Martins