É mais fácil derrubar uma estátua do que uma ideia. Podemos discutir o simbolismo desta ou daquela acção, o significado da destruição, dos actos irreflectidos, da ignorância, mas julgo que não podemos desprezar os sintomas da actualidade. Os muros entre seres humanos, o racismo, a xenofobia, todo o tipo de injustiça social, já deviam ter sido destruídos há muito. Se esta pandemia veio colocar alguma coisa em evidência foi que estamos todos ligados. A globalização teve como consequência positiva a interdependência dos diferentes territórios, dos diferentes povos. A indignação e a revolta são comuns. Não me parece necessário explicar porquê, já que os motivos são claros. A sociedade já começou a mudar, o sistema é que não. A forma como se exerce o poder e a representatividade está desactualizada, é preciso que mude. Enquanto não for o caso, é provável que a tensão continue a subir.
É claro que em momentos críticos, sobretudo agora que estamos ligados por redes sociais, seja tudo mais rápido. É preciso ter em conta, contudo, que essa rapidez está mais próxima do acto de destruição de um objecto do que da efectiva transformação de mentalidades. Se queremos mesmo que a sociedade mude, temos de estar disponíveis para alterarmos a maneira como vivemos o quotidiano. É aí que se pode ver onde é que está o activismo, o sacrifício pelas causas, a luta lenta, água mole, na opinião pública, nas mentalidades, nas práticas instituídas. É nesse lugar quase invisível que se travam as grandes batalhas da coragem de dizer que não, de denunciar as más práticas, de tentar propor alternativas à lógica dominante. Não nos podemos esquecer disso em momentos de efeverscência, porque o regresso à dormência é muito rápido, o conforto, mesmo que mínimo, inebriante.
Uma vez, numa reunião, um autarca contou-me que estava com um problema com as papeleiras, que eram sistematicamente vandalizadas em certas partes da cidade. Lembro-me de lhe dizer: «se não quer estar sempre a substituir as papeleiras, invista na cultura». Era mais jovem e mais ingénuo, mas gosto de pensar nesse momento como um diálogo que deveria ser mais comum (na altura não foi muito mais longe, claro, porque na prática os decisores querem é resolver o problema imediato, que se lixe o futuro). Tenho consciência de não se consegue resolver todos os problemas de uma cidade através do investimento numa programação cultural regular e diversificada. Mas tenho a certeza que a longo prazo a diferença pode ser crucial, a par de uma aposta na educação, no ambiente, tendo em vista a saúde das comunidades. Não estou a falar de gerir a doença, mas sim de pensar a saúde de forma plena, incluindo a saúde social, que, como é óbvio, não está de todo garantida.
As ideias não caem de um momento para o outro. E as práticas que perpetuam essas ideias também não. A história da humanidade é um acto contínuo composto por todos os gestos, todas as acções, discursos, agressões e afectos. Se queremos fazer cair ideias, transformar mentalidades, é preciso estarmos dispostos a fazer um trabalho muito maior do que o de derrubar objectos. Sim, é um trabalho lento e pouco visível, mas que tem de ser feito em nome dos mesmos valores que muitas vezes são invocados com leviandade por quem só quer fazer parte dos momentos de glória.
À PARTE
Levi Martins
Diretor da Companhia Mascarenhas-Martins