O desejo

Hoje estamos no Cacém. Acho sempre piada a fazer este tipo de afirmação dois ou três dias antes, na altura em que escrevo estes textos. Pode nem sequer vir a acontecer, por algum motivo imprevisto, embora acredite que sim, que hoje, 19 de Setembro, vamos estar no Auditório Municipal António Silva a apresentar o nosso espectáculo “Há dois anos que eu não como pargo” no âmbito do festival MUSCARIUM#6. Isto lembra-me, aliás, a condição de todos os espectáculos ao vivo, que são sempre a promessa de um futuro incerto. À partida, se os factores não nos traírem, vamos actuar, vamos conseguir que o espectáculo decorra sem percalços, os actores vão dizer o que têm para dizer, vai haver música onde está previsto haver música, não vai haver nenhum corte de electricidade, etc.

Gosto de pensar nesta imprevisibilidade porque me recorda da natureza das coisas. Não conseguimos nunca ter a certeza de que aquilo com que nos estamos a comprometer vai realmente ter lugar. Noutras actividades talvez haja menos consciência desta condição. E seria interessante tentar perceber, em comparação com os espectáculos ao vivo, qual o grau de eficácia das previsões de um gestor, de um presidente de autarquia, enfim, de qualquer tipo de actividade profissional que dependa da actividade outros seres humanos e não maioritariamente de máquinas. Se no teatro ou na música – os exemplos que conheço melhor – existe a consciência de que de repente tudo pode correr de forma muito diferente da prevista é porque, na verdade, acontece com frequência. Não estou a referir-me a problemas graves, mas à necessária adaptação ao que está a acontecer naquela ocasião, naquele dia, com aquelas pessoas. A vida é muito mais assim do que assado. Os planos servem sobretudo para nos sentirmos mais confortáveis, em controle daquilo que sabemos que não é possível dominar.

Para a semana voltamos ao Cinema-Teatro Joaquim d’Almeida para mais três apresentações, de Sexta a Domingo. Voltamos a casa, se é que podemos chamar casa a um espaço onde passamos tão pouco tempo. Mas é lá que habitualmente estreamos as nossas produções, é lá que sentimos que estamos a trabalhar para as pessoas desta cidade, Montijo. E é lá que alimentamos o sonho de que um dia as coisas serão diferentes: um dia havemos de ter um chão, projectores, mesas de luz, mesas de mistura, armazém… Um dia. Só que, ao mesmo tempo que penso e escrevo estas palavras, sei que tal como hoje podemos muito bem estar ou não estar no Cacém, esse dia pode muito bem nunca acontecer. Assumo-o sem qualquer tipo de mágoa ou pessimismo, sei que é assim, é só.

O alento mantém-se por sabermos, e a experiência que vamos acumulando confirma-o, que as ambições nos conduzem ao real, às acções, à construção de um caminho que depende muito mais da nossa motivação do que das condições que vamos tendo. E motivação, apesar de todos os obstáculos, é coisa que não nos falta. Se não fosse o desejo o motor da criação artística e produção cultural no nosso país, então neste momento o mais provável é que só em Lisboa e no Porto existissem estruturas profissionais a trabalhar de forma continuada. Saúdo todos aqueles que insistem em criar onde a mera sobrevivência é uma luta diária, neste momento particularmente crítico de incerteza. E deixo um apelo a todos aqueles que valorizam a actividade artística e cultural: regressem aos espectáculos, apoiem os artistas, ajudem a combater todos os preconceitos que ainda existem em relação ao investimento público que é feito nestas actividades tão intimamente ligadas à saúde da democracia e à liberdade.

À PARTE
Levi Martins
Diretor da Companhia Mascarenhas-Martins