1995

No Centro Comercial do Bonfim, em Setúbal, havia uma pequena loja de discos. Era num recanto, o que lhe dava um ar meio clandestino, apertado, só lá cabiam duas ou três pessoas. O proprietário, penso que se chamava Mário, era conhecido do meu pai e foi provavelmente por isso que comecei a parar ali de vez em quando. Estávamos nos anos 90, não havia ainda telemóveis, muito menos leitores de mp3. O tempo era menos acelerado, parece-me, o que permitia alguns luxos na relação que era criada nestes espaços comerciais. Havia tempo, por exemplo, para escutar duas ou três faixas do álbum que se queria comprar, se não estivesse ninguém à espera para ser atendido. Foi assim que decidi comprar alguns discos que se tornaram fundamentais para a minha vida. Um desses discos foi o “Mellon Collie and the Infinite Sadness”, dos Smashing Pumkins, que comemorou 25 anos no passado dia 24 de Outubro. Tenho memória do Mário, espero que seja esse o seu nome, ter posto a tocar com entusiasmo a “Tonight, Tonight”, aumentado o volume ao ponto do som inundar pelo menos a entrada do Centro – sobrepondo-se, imagino eu, àqueles irritantes e repetitivos sons dos cavalos ou carrinhos para crianças, nos quais se colocava uma moeda para ficar ali aos solavancos no mesmo sítio. Depois de termos escutado mais duas ou três faixas do primeiro disco (para quem não sabe, é um álbum duplo com 28 canções, 14 em cada disco), decidi comprá-lo.

Conto este episódio não tanto para vos falar do “Mellon Collie” e dos seus méritos – continuo a achar que os tem, por acaso, ao contrário de tantos outros que me marcaram na altura –, mas para tentar voltar ao momento da minha vida em que comecei a ter uma relação mais forte com a fruição cultural. Foi também por volta dessa altura que começou a acontecer com mais frequência alguém dizer: “tens de ouvir este disco”, “tens de ver este filme”, “tens de ler este livro”, etc. Foi exactamente assim que vi pela primeira vez de muitas o “Pulp Fiction”, do Tarantino, que à época constituiu também uma grande revelação para mim e para aqueles com quem me dava. Nos intervalos tenho ideia que passámos muito tempo a falar destas descobertas, com um entusiasmo que gostava muito de conseguir transmitir aos outros. Quando insisto na importância das artes e da cultura no quotidiano lembro-me sempre da importância que teve para mim, para nós, que sentíamos que a nossa liberdade se expandia através daquelas experiências. O mundo era, afinal, muito mais do que a escola, do que os trabalhos dos nossos pais e seus amigos. E era, por conseguinte, muito mais do que as opções que pareciam estar-nos destinadas nas escolhas de área que teríamos de fazer no 10.º ano e depois eventualmente no ensino superior ou nas profissões que viéssemos a ter.

As inúmeras descobertas que fizemos através dos discos, filmes, livros ou espectáculos relacionavam-se com aquilo que começávamos a construir, no que diz respeito a uma identidade individual, mas também com aquilo que era a nossa percepção da realidade. Aliás, as duas estavam muito ligadas: a abertura que se dava pelo contacto com as artes permitia-nos imaginar identidades muito diferentes daquelas que, ao que parece, os mais velhos esperavam que adoptássemos. O que me leva a pensar, como habitualmente, que a relação com as artes e com a cultura tem uma relação directa com a liberdade e com a responsabilidade – tanto na relação que temos com aquilo que somos, mas também na relação com os outros.

Entretanto a loja de discos que eu tanto amava transformou-se numa loja de telemóveis. Infinite sadness.

À PARTE
Levi Martins
Diretor da Companhia Mascarenhas-Martins