O trabalho invisível

De volta ao confinamento, uma parte do trabalho na cultura volta a ficar em suspenso. E vem à memória tudo o que aconteceu entre Março e Maio de 2020. O esforço dos profissionais das artes para manter o contacto com o público através dos meios online parece ter sido reconhecido, embora muito do que aconteceu tenha sido baseado em soluções de desenrasque, de partilha de materiais de arquivo, de tentar fazer qualquer coisa a partir do possível. No que diz respeito ao teatro, houve vários exemplos de transmissão de espectáculos filmados na íntegra, com destaque para a Sala Online do Teatro Nacional D. Maria II. Ainda que muitos tenham tentado passar a ideia de que um registo de um espectáculo não é o mesmo que um espectáculo — recordo-me perfeitamente de assistir a uma entrevista com o João Lourenço sobre a disponibilização de registos do Teatro Aberto em que o assunto era abordado de forma clara — parece-me que se foram criando alguns equívocos sobre as fronteiras entre uma e outra coisa.

Em parte, parece-me que a pressão para se fazer transmissões em directo ou em diferido de espectáculos ao vivo partia da necessidade de manter uma relação com o público por parte das estruturas e espaços. Porém, há um lado mais preocupante que é quando esta necessidade surge de uma pressão para se apresentar qualquer coisa, seja o que for, para mostrar trabalho. Como se só fosse possível comprovar que existiu trabalho artístico quando há um produto que o demonstre. Há, contudo, uma realidade com a qual temos de nos confrontar: são vários os projectos que foram criados, ensaiados, que estiveram praticamente a estrear e que talvez não venham a garantir a existência de um resultado final. No caso da Mascarenhas-Martins existem já datas marcadas para regressarmos ao Nó, espectáculo que devia ter estreado no dia 15 de Janeiro no Cinema-Teatro Joaquim d’Almeida (a estreia está reagendada para 26 de Março no mesmo espaço). Mas esse pode muito bem não ser o caso de muitas outras estruturas em circunstâncias semelhantes. Abordo este assunto porque me parece importante que se perceba que mesmo que esses espectáculos não venham a estrear, o trabalho existiu e tem de ser pago, pelo que é importante apelar a que todas as entidades mantenham os seus compromissos mesmo em relação a projectos que não chegaram ao momento de relação com o público.

O registo e a transmissão online de espectáculos quase nunca podem ser uma solução para este problema. Em muitos casos é verdade que pode existir uma gravação em plano geral de um ou mais ensaios, mas é muito importante que não se confunda este tipo de registo com o que significa filmar um espectáculo de forma séria e profissional — que seria a única forma de garantir que nem o público nem o trabalho dos artistas saem lesados da situação. No caso de não existirem estas condições, que haja o discernimento de não se forçar uma situação que nos prejudica a todos. E que se reconheça o trabalho invisível como trabalho, mesmo que não haja nada para mostrar.

À PARTE
Levi Martins
Diretor da Companhia Mascarenhas-Martins