Chegados da Rússia

A sede da URAP, bem na Baixa sadina (Travessa do Garim), está a dois passos de Leonor, menina de onze anos que quando tinha quatro foi ofertada com “O Principezinho”, de Antoine Saint-Exupéry. Faz recanto, a casa dela, lá onde a família lhe leu, não menos encantada, a história do rapazito com seis que desenhou o que os outros e sobretudo os adultos identificaram como um chapéu, sendo afinal – naqueles contornos opacos de duas colinas adelgaçadas e alongadas nas extremidades – o traçado de uma jibóia que engolira um elefante.

Leonor não sabia então que o seu amigo, experimentando o insucesso dos seus esboços artísticos, acabou por vir a escolher, algo inconformado, a profissão de aviador. E foi nesta qualidade, ao serviço da sua pátria, a França, que foi abatido num voo de reconhecimento por aviões da Alemanha nazi, perecendo para sempre na noite do mar da Córsega (31 de Julho de 1944).

Um pouco à maneira da outra história da sopa de pedra, Leonor e Ana, a mãe, não hesitaram em pensar ensaiar mais uma, aquela que tem a ver com os dois soldados que a caminho da terra de boleia, num fim-de-semana (num tempo já algo remoto), engendraram a forma de comer numa casa de pasto sem nada pagar: simplesmente, apostaram com o dono em como conseguiriam fazê-lo sem dobrar os braços, o que veio a verificar-se porquanto, sentados frente a frente, de braços bem esticados como se de alavancas se tratassem, um e outro manejavam os talheres e erguiam os copos do oposto num mecânico sobe e desce contínuo até ao esvaziamento completo da comida e da bebida. O serventuário, bonacheirão, não só nada lhes cobrou, honrando a palavra, mas ainda recheou os dois militares com mais farturas da cozinha.

Alguém tratou e trata para que Leonor não desconheça que ao encaminhar-se para a Praça do Bocage pelas Ruas Paula Borba e Serpa Pinto, ali havia, contíguo à Igreja de São Julião, um 1º andar ajuntando jovens. Era uma dependência onde se elaborava o “Noticias de Setúbal”, e fica na memória a tertúlia na qual um padre questionava pela afirmativa (e de certo modo em franco comprometimento) que as opiniões de um dos presentes eram de índole comunista, falta de precaução que o próprio exteriorizou com sinal de pânico porque o visado não se coibiu de responder: “Sim!”

Que uma trave-mestra era, pois, a Avenida 5 de Outubro do Círculo Cultural, frente à Moagem, hoje Edifício Bocage, do Café Tamar, da travessia do caminho-de-ferro, no Quebedo, até à Academia Sapec, agora O Egas.

É altura (até agora foi retoma) de mais ainda saber, graças a um encontro não programada com o setubalense Alberto Sousa Pereira, professor e cidadão comprometido com o associativismo. A Rua Paulino de Oliveira, no Tróino, e então no nº 36, 1º, acolheu como sede a CDE, Comissão Democrática Eleitoral, opositora do regime fascista nas eleições legislativas de 1969. Era seu proprietário o Kalli, também proprietário de uma loja de roupas no Largo da Misericórdia. Já não lhe bastava tal exposição bem política, na montra da loja amontou uma enorme quantidade de sobretudos, nem um a cobrir um manequim ou pendurado num cabide, só um cartão manuscrito explicava tudo: “chegados da Rússia, são muito quentinhos”.

Leonor: da Rússia Soviética!

Política e Cultura
Valdemar Santos
Militante do PCP