Poupar na cultura segundo João Afonso

Estava a tentar não escrever sobre o facto de termos sido novamente visados pelo Vereador João Afonso na reunião da Câmara Municipal do Montijo de 6 de Setembro. Essa reunião, por ter colocado todos os demais eleitos contra J.A., fez-lhe um favor: o de poder colocar-se no papel de mártir, vítima de uma classe política de que se considera distinto, à parte. Nos textos que tive oportunidade de ler nas redes sociais em defesa de J.A. é curiosa a ausência de resposta às acusações que lhe foram feitas (nomeadamente de mentir ou distorcer informação). A frustração com a realidade ofusca e tolda o entendimento, mas quem conhece a História do século XX deveria conseguir distanciar-se para ver melhor.

Enfim, como voltou a referir a Companhia Mascarenhas-Martins e a sua relação com a autarquia, não posso deixar de partilhar uma reflexão sobre o assunto. Afirmou J.A., num longo discurso pautado pelo refrão “Enquanto o Montijo” (Enquanto o Montijo não tiver isto, enquanto o Montijo não tiver aquilo, enquanto o Montijo não tiver aqueloutro, não devem existir apoios “astronómicos” para a Mascarenhas-Martins, etc.), que a gestão da Casa da Música Jorge Peixinho saía muito cara aos montijenses e que devia ser assegurada pelos funcionários da Câmara Municipal.

Ora, vamos às contas: a Câmara Municipal aprovou um apoio financeiro de 80.000 euros para a Mascarenhas-Martins para o ano de 2023, entidade que tem actualmente sete profissionais contratados (mais um que regressa em Janeiro, tendo conseguido uma bolsa de criação literária da DGLAB entre Julho e Dezembro deste ano), vários prestadores de serviços pontuais, que paga cachets aos grupos e artistas que são programados (na Casa da Música Jorge Peixinho e também no ciclo de programação “aqui ao lado”), para além de uma multiplicidade de outras despesas inerentes à actividade, direitos de autor, seguros, material técnico, consumíveis, entre muitas outras. Quem não souber quanto custa um trabalhador por ano ao empregador pode facilmente encontrar simuladores na internet, consulta que recomendo, mesmo partindo do salário mínimo nacional. Ora, com 80.000 não é possível um auditório como o da Casa da Música Jorge Peixinho ter equipa e programação regular. E o orçamento total que temos não é de todo suficiente para assegurarmos o que nos parece justo para os trabalhadores qualificados que temos, tendo em conta a dimensão do trabalho em causa.

Basta fazer um raciocínio rápido para se perceber que para assegurar o funcionamento do espaço a Câmara Municipal teria de contratar uma equipa adicional; bom, a não ser que quisesse abrir o auditório meia dúzia de vezes por ano para iniciativas sem qualquer exigência técnica, o que não se poderia considerar uma programação. De qualquer forma, o que mais importa não é o que J.A. afirma, mas aquilo que deliberadamente omite: é que a Mascarenhas-Martins conta até 2026 com um Apoio Sustentado da Direção-Geral das Artes (Ministério da Cultura), que foi obtido num concurso nacional avaliado por um júri independente, no valor anual de 180.000 euros. Se este financiamento não tivesse sido obtido por nós para aplicar aqui, seria gasto noutro ponto do país por outra entidade semelhante. Não seria “poupado” aos contribuintes, para que fique claro — e ainda bem, tendo em conta que este financiamento é uma forma de tentar garantir direitos fundamentais inscritos na Constituição da República Portuguesa.

Analisemos o cenário desejado por J.A.: a Câmara Municipal do Montijo gere a Casa da Música Jorge Peixinho, logo passa a contratar uma equipa. Só aí teria de investir mais do que 80.000 euros (faça-se contas a três técnicos superiores e quatro assistentes operacionais, para começar). Para além da equipa, teria de suportar todos os custos inerentes à programação, naturalmente sem contar com os 180.000 provenientes da DGArtes, porque esse apoio é atribuído à Mascarenhas-Martins. Mesmo que no futuro a CMM concorresse ao financiamento existente para a Rede de Teatros e Cineteatros Portugueses, a que a CMJP só poderá pertencer daqui a dois anos, para o obter teria de garantir 50% de investimento; ou seja, teria de investir pelo menos 50.000 euros para obter outros 50.000, sendo esse o patamar mínimo.

Em suma: pelas contas de J.A. sai muito caro à autarquia atribuir-nos um financiamento de 80.000, quando colocamos 180.000 da DGArtes em cima da mesa (sem falar sequer dos nossos currículos e experiência, que não são despiciendos). Sairia mais barato à Câmara assumir todos os custos. Se calhar sou eu que estou a ver mal e a autarquia tinha uma equipa secreta escondida na Divisão de Cultura que até à inauguração da CMJP não tinha trabalho nenhum em mãos e estava só à espera que aparecesse este novo espaço. E na gaveta dessa equipa estava, claro, uma verba para programação que nada tinha que ver com o orçamento municipal (era, tenho a certeza, um apoio privado de um generoso mecenas).

Perdoem-me a ironia. É que depois de me dar ao trabalho de tentar explicar uma coisa tão óbvia (e pública), apercebo-me do seguinte: o problema deve ser mesmo só de falta de frontalidade. J.A. por algum motivo não aprecia o nosso trabalho e o que representamos (liberdade?). Não creio que seja uma questão pessoal, porque nunca quis sequer reunir connosco. Como não seria muito favorável para a sua imagem afirmar que se alguma vez for eleito irá tentar fazer com que não tenhamos condições para trabalhar no Montijo, numa altura em que até o PSD nacional admite que existe subfinanciamento na cultura, opta por passar um atestado de estupidez aos seus eleitores, partindo do pressuposto que acreditam tanto na sua palavra que não se dão ao trabalho de verificar os factos e fazer contas. Ou então por considerar que alinham nesta ideia de que um território só deve ter investimento na cultura quando todos os outros problemas estiverem resolvidos. Ou seja, nunca.