Em vésperas de tomar posse como bispo de Setúbal, Américo Aguiar conversou com o Semmais, revelando que ainda não conhece bem a diocese, mas considera Setúbal “uma região abençoada”. Não gosta da mitra e promete estar mais próximo das gentes e das forças vivas, seguindo o legado de D. Manuel Martins. Para já, não fala em mudanças na cúpula sadina, mas promete fazê-las se for necessário.
Tem dito que sempre esteve disponível para aceitar qualquer missão de que fosse incumbido pelo Papa Francisco. Ainda assim, pergunto se alguma vez cogitou a hipótese de Setúbal?
Sempre tive a perfeita consciência que terminada a Jornada Mundial da Juventude qualquer uma das dioceses portuguesas que estivessem em situação vacante ou de mudança me poderia caber. Tivemos durante algum tempo Açores, Bragança, Setúbal em aberto e, agora, estão uma mão cheia delas em processo de auscultação. Portanto, Setúbal era uma dessas possibilidades.
Mas insisto, Setúbal vinha a sua mente. No intímo cogitou essa hipótese?
(pausa e risos) Respondo assim, quando olho para trás digo que houve aqui a mão de Deus obrigatoriamente. É que não é uma coincidência, nem duas nem três, são muitíssimas, relativamente ao meu percurso de vida e o que foi o percurso do D. Manuel Martins. Sou um jovem de Leça do Balio que sempre o tive como referência, jovem civil e jovem seminarista.
São os dois únicos eclesiásticos de Leça do Balio…
Exato. Aliás, o meu Cálice da Missa Nova, que vou usar na celebração de Setúbal, é o cálice dele. D. Manuel ofereceu-me esse cálice, em cujo pé mandou gravar o nome dele e a sua Missa Nova, de 1951, e o meu nome com a inscrição da minha Missa Nova, em 1991, exatamente 50 anos depois.
Há portanto uma ligação simbólica e afetiva muito forte?
D. Manuel foi sempre uma figura que me acarinhou. Conheci-o melhor na Diocese de Setúbal, como seminarista, porque, em período de férias, vinha de vez em quando passar uns dias com ele a Setúbal. Lembro-me perfeitamente de andar pelas paróquias, e do processo da compra de um espaço que viria a ser a atual Casa Episcopal, porque ele achava que o local inicial não correspondia às necessidades dos seus futuros sucessores.
E dos períodos em que deu o ‘corpo às balas’ durante a grande crise dos anos 80…
Tenho memórias e conhecimentos posteriores, porque nasci em 1973. Apanho a sua fama de ‘bispo vermelho’ e essas suas lutas em Setúbal contra a pobreza. Costumo agora brincar com essa ideia de ‘bispo vermelho’, porque não há mais vermelho do que as vestes de um cardeal. Mas repare que D. Manuel foi Vigário Geral do Porto e eu também, foi responsável da Irmandade dos Clérigos e eu também. Podem ser, como se diz, coincidências, mas prefiro dizer que foi a tal mão de Deus.
Muitos observadores vaticinavam que, depois de tanta dimensão mediática, fosse para a Cúria Romana. Ficou alguma mágoa?
Temos a mania que o que é estrangeiro é que é bom, e temos a mania de que o topo da carreira é ir para fora do país. Não penso nada assim. Não sei como o Nosso Senhor colocou no nosso ADN essa desvalorização constante, mas sei do que somos capazes de fazer, e a JMJ provou essa competência e capacidade de fazer e fazer bem. Quanto ao resto, tenho a consciência de que os media ajudaram a criar essa possibilidade, que de facto existia, mas não aconteceu. A minha formação escutista diz que tenho que andar sempre de mochila às costas. Aquilo que a Igreja me pedir e, agora nas atuais circunstâncias, o que o nosso Papa me pedir, pego na mochila e vou, sem olhar para trás, sem problemas, sem complexos.
Nessas conversas com o Papa Francisco, não ficou com a ideia de que o queria mais próximo?
(Risos) Não lhe vou dizer. O que converso com o Papa não é para ser revelado.
Desculpe o abuso da pergunta, mas quero saber quando soube exatamente que o seu destino seria Setúbal?
Foi numa conversa com o Papa, no dia 8 de setembro, que é um dia muito bonito, o da Natividade de Nossa Senhora. E, repare mais uma vez Nossa Senhora a marcar o meu caminho.
Compreende este período tão longo de vacatura na Diocese?
Isso lamento profundamente. Nos tempos que correm é muito importante que algumas metodologias e protocolos sejam modificados, para que não ocorram estes vazios nas dioceses, principalmente quando eles acontecem por razões que dependem de uma transferência, por exemplo, como foi o caso. Por exemplo, quando um bispo atinge os 75 anos de idade, toda a gente sabe que é preciso substituí-lo. Quem tem essas obrigações tem que ter um xadrez presente, uma rede que permita um projeto alargado da presença da Igreja em todo o país.
Foi de facto muito tempo, tanto mais que esta diocese é grande, complicada, com muitas especificidades…
É verdade. Eu até acho que Setúbal já é a terceira diocese do país em termos populacionais, a seguir a Lisboa e Porto. Ora, como diz o outro, isto é brincar com o meu trabalho. Foi uma situação inaceitável, inadmissível.
Julgo que não me vai responder, mas os nomes que foram cogitados na altura foram ficando pelo caminho. Há forças de bloqueio na Igreja?
O senhor D. Carlos Azevedo, que está em Roma, e é um especialista em história publicou um livro sobre documentação e correspondência entre Portugal e a Santa Sé. E é interessante que, a páginas tantas, fala do processo da nomeação do bispo Leiria-Fátima da altura – início do século XX, julgo que o bispo das aparições, D. José Alves Ferreira da Silva – e o que é engraçado é que passados cem anos, vamos ao papéis, e não tem nada a ver com o que diziam à época. Assim se vê as verdades dos mentideros, ou do ‘consta-se que…’, do ‘eu acho’, ou do ‘eu não sei o quê’. São engenharias nasais e lixeiras. Mas nós ajudamos à festa…
Mas desses rumores pode haver uma ou outra verdade?
Repare. Eu tenho que aceitar que quem faz as coisas faz o melhor que sabe e que pode. O que me entristece é que um sacerdote ou um bispo diga que não àquilo que é uma missão que a Igreja lhe pede, seja qual for a razão, a não ser que esta seja muito evidente.
Acha que ocorreu alguma situação dessas neste processo?
No historial dos mentideros que alimentam os cafés eclesiásticos temos muito disso. Recusou… não quis. E olhamos para os Açores, para Bragança e outras dioceses e vem sempre essa conversa. Que muitos disseram que não, que muitos negaram. Portanto, daqui a cem anos haverá um livro para explicar quais foram as razões para Setúbal ter ficado pendurada quase dois anos sem bispo.
Dá ideia que até sabe o que se passou…
Está enganado. Eu também não sei.
Já falou com alguém da diocese?
Naqueles dias após a nomeação contactei o padre Lobato, administrador diocesano, que saúdo, e que conheço há muitos anos, desde os tempos em que ia a Setúbal como seminarista. Mas ele estava a fazer um teste Covid que deu positivo. Durante alguns dias não arrisquei ir ao seu encontro, pelo que estive com ele numa data subsequente, juntando sacerdotes para começar a analisar algumas questões, nomeadamente a celebração da tomada de posse.
Mas já falou certamente com o D. José Ornelas, ou mesmo com o D. Gilberto Canavarro dos Reis, os seus dois antecessores?
D.Gilberto é meu vizinho no Porto, veja bem. Mantive com ele uma longa e simpática conversa, mas já passaram oito anos e os tempos são diferentes. Só guarda memórias e um enorme agradecimento pela sua passagem por Setúbal. E encontrei-me com o D. José Ornelas, em Roma, durante o Consistório. Foram umas horas muito interessantes a bater um papo.
Trouxe algumas perceções para esta sua caminhada?
O D. Ornelas sinalizou duas ou três situações em que ele tinha empenho e estava a acompanhar, mas, pela sua saída, ficaram penduradas.
Não as quer identificar?
Para já não.
De que forma conhece a diocese que vai dirigir e a região em si?
Não conheço. Digo mais: A única pessoa que não conhece nada da diocese de Setúbal sou eu. Mas é um bom começo, porque significa que só posso melhorar e, como estamos a viver o Sínodo, como o Papa diz, não há nada melhor que chegar exatamente assim. Entregar-me nas mãos e nos corações das pessoas de boa vontade deste território para o conhecer, servir e amar. Por outro lado, como cidadão que gosta da polis, da política, da vida social, sinto-me minimamente informado sobre as alegrias, tristezas, sonhos e desaires, mas também as potencialidades deste território
Inclui nesse pacote alguns estigmas que o têm feito marcar passo?
Também. Como dizia D. Armindo, bispo do Porto, uma grande diocese tem grandes problemas e grandes soluções. Acho que isso também se aplica aos homens e mulheres deste território, que tem, como me vou apercebendo (faço trabalho de casa) quase 900 mil pessoas e tem de tudo, muita riqueza, muita pobreza. E tem um novo desafio pela frente, que é o facto de a península ter sido muito prejudicada por estar unida a Lisboa por causa dos fundos comunitários.
Está a referir-se à NUT. Essa é uma guerra que está ganha…
Sim, mas que foi muito prejudicial, mais até que em relação ao Porto.
Neste caso, estamos a falar de dois mil milhões a cada quadro comunitário de apoio.
Exato. É só fazer as contas, como dizia o outro. Agora, com este anúncio de que, a partir de 2027, cessa essa limitação, vai mexer muita coisa, como me têm dito. E eu serei mais um para ajudar, como provocador junto de quem de direito, para que, com o tempo, não se cometam erros e se possa aproveitar esta nova fase.
Esta região é abençoada. Parece um Portugal dos pequeninos. Temos tudo, litoral e interior, agricultura, grandes indústrias instaladas, e até forças armadas. Em jeito de brincadeira, até diria que temos território para içar a bandeira da independência. Temos é que olhar para o que nos unes e colocar de parte as pequenas coisas que nos separam.
É muito interessante essa perspetiva. Pedeme a seguinte pergunta: Há a perceção de que os seus antecessores afastaram-se da sociedade civil, parece ter um perfil muito diferente…
Sobre isso não devo fazer comentários. Não acompanhei o trabalho deles, nem pastoral nem civil.
Insisto. Vai ter uma ação mais no terreno, mais interveniente?
A minha participação política e cívica tanto é cadastro como currículo. Mas também acho que um dos problemas que temos em Portugal e nas nossas terras é o alheamento dos cidadãos em relação à política, e não digo partidária. A polis é uma responsabilidade de todos nós. Falamos nas redes e nos cafés, mas quando é hora de votar ficamos em casa. Não pode ser. E a Igreja é um parceiro do Estado.
Um Estado laico, já agora…
Claro, a Deus o que é de Deus, a César o que é de César. O Estado é um Estado laico, como quero, defendo e trabalho bem com isso. Mas a Igreja é, no nosso país, ao lado da administração pública e das forças armadas, a presença mais robusta e organizada naquilo que são objetivos comuns.
Significa que vai usar menos a mitra e mais o fato de trabalho para estar mais junto das gentes e instituições da região?
A mitra absolutamente, e muito menos o chapéu cardenalício até porque são peças que não gosto. Um bispo, uma diocese, uma paróquia ou uma comunidade, existem e atuam para resolver problemas, anseios e procurar ajudas. E isso só pode acontecer em sinergia.
Vai ser um orgulho para a diocese ter um bispo que também é cardeal?
Isso aí… Acho que será e poderá não ser, não é o mais importante.
Como espera ajudar a resolver o afastamento dos leigos na vida cívica?
Em Portugal temos que agradecer o facto de a igreja portuguesa no pós 25 de Abril ter tomado uma decisão de não defender partidos católicos, mas defender católicos nos partidos.
Estava implícito na minha questão…
É muito importante. Tenho pena que quando olho para trás, para o início da nossa democracia, era normal ouvirmos referências à ala católica das forças partidárias. Acho que temos que reforçar, sensibilizar. encorajar e fortalecer. homens e mulheres com essa identidade católica para não terem medo de abraçarem a política partidária. Isso alarga as sensibilidades no interior dos partidos, dá-lhes uma maior representatividade da sociedade. A verdade é que nós católicos estamos a perder por falta de comparência. É isso que tem que mudar.
Já agora a sua experiência política em Matosinhos vai ser importante para lidar para os autarcas?
Talvez, conheço os bastidores o que é possível e o que não é, o que é conveniente e o que não é conveniente. Mas também reconhecer o papel de cada um, no respeito pelas diversas funções. É importante que um senhor presidente de câmara saiba quais são as minhas competências e eu as dele. Não tenho a tentação de ser um autarca na sombra.
Não receia alguma identificação ideológica?
Nada. Olhe, estive na JSD e na JS. Sou do centrão, da extrema esquerda do PSD e da extrema direita do PS. E respeito todos os partidos e todos os políticos. Nunca encontrei nenhum que tivesse tomado uma decisão, mesmo errada, de forma consciente para prejudicar os seus cidadãos.
É homem para fazer grandes mudanças?
Sou para as grandes mudanças, mas também para grandes manutenções. Se estiver convencido que tem que ser feito que se faça. A demora do tempo só piora as coisas. As vezes não deve ser feito imediatamente, outras vezes não deve demorar tanto tempo. O ideal é decidir em dialogo sinodal, falando livremente e ouvindo com respeito.
Gosta de trabalhar em equipa. Vai criar um núcleo duro?
Nestes primeiros meses vou ouvir. Há uma reunião no dia 30 com todo o clero e quero ouvir o que pensam das principais figuras da diocese. O vigário-geral, o chanceler, o economo, o reitor do seminário e o do santuário. Fazer uma medição, qualquer alteração neste momento seria um tiro no escuro. Neste momento tenho boas indicações.
É com estes que vai contar…
O primeiro decreto de um bispo reza assim: Estão todos reconduzidos até que se diga o contrário.
As mudanças podem vir depois?
Depois já é outra coisa. O meu colega dos Açores, por exemplo, ainda não completou um ano e já mudou o vigário-geral, o seminário e sei que lá mais. O que peço a todos é que assumam as suas funções, sirvam e que estejam alerta, porque as mudanças nem sempre significam incompetência.
É expectável que leve alguém consigo, da sua confiança?
Não acho, nem nunca achei que isso seria positivo. Quando alguém que chega de fora traz mais que os seus haveres, causa compreensivelmente desconforto e desconfiança.
Vai chamar mais leigos as tarefas da diocese?
Em relação aos leigos e aos clérigos, aos homens e às mulheres sou contra cotas e paridades. E vou explicar porquê para não causar problemas. Acho que em cada momento devemos escolher a melhor pessoa para exercer determinada tarefa. As vezes é um homem, outras vezes uma mulher; às vezes um leigo, outras um clérigo. Não gosto nada dessas obrigações, porque muitas vezes são erros de casting.
A sua dimensão mediática e a sua forma de comunicar pode ajudar a trazer mais crentes à diocese?
Se pode não sei, se devo fazer por isso, devo. Se vou conseguir, logo se vê. Como disse o D. Manuel Clemente na sua tomada de posse: “Posse nada disso, a diocese é que vai tomar posse de mim”. O espirito é esse. No dia 26 vou ser diocesanizado, e estou pronto para o desafio.
Padres não devem forçar nem impor nada
O facto de alguns padres mais jovens estarem a fazer retornar um certo tradicionalismo, integrismo e clericalismo na ação pastoral não preocupa, para já, o novo prelado sadino: “Em todos os presbitérios temos várias sensibilidades. Uns são do Benfica, outros do Porto ou do Sporting. Aliás, vou ter que me fazer sócio do Vitória. Não me preocupa essas conotações. O que me preocupa é o que as pessoas pensam, tanto me sinto bem numa celebração com mais peso ou solenidade, como me sinto bem numa celebração mais simples, desde que se mantenha a sacralidade e o decoro. O que não gosto é que e imponha um único sentir. Isso não deve acontecer” E lembra o Papa Francisco, quando este afirma que a Igreja deve ser “todos, todos e todos”. Um padre deve ser livre no seu exercício, mas não deve forçar nem impor”, finaliza.
Primeiros périplos logo a seguir à tomada de posse
O novo bispo de Setúbal já tem agenda para os primeiros dias. Após a posse de dia 26, na Sé Catedral de Setúbal, seguir-se-á, na sexta, 27 e sábado, 28, um périplo de visitas institucionais. As corporações policiais (PSP, GNR e PJ), o Hospital S. Bernardo, o Estabelecimento Prisional da cidade sadina, o Instituto Politécnico de Setúbal, a Comissão de Proteção de Menores e a empresa Navigator. Na segunda-feira, 30 de outubro, será simbolicamente recebido pelo presidente da câmara de Setúbal, André Martins. “Começo por Setúbal para não ferir suscetibilidades, mas tenho em mente conversar com todos os presidentes das câmaras da região”, diz ao Semmais.