Cem mais

Este é o centésimo texto que escrevo para o Semmais. Obrigado Raul Tavares e equipa deste jornal pela liberdade e pelo incentivo a continuar a registar as minhas reflexões, sermões, por vezes desabafos, quase sempre sobre o tema que me move: cultura, enquanto cultivo do espírito, seja lá o que isso hoje em dia puder ainda significar.

A minha obsessão por esta área já me trouxe inúmeros dissabores, conflitos, problemas de saúde, crises pessoais, ao ponto de ter duvidado, a certa altura, se não devia mesmo mudar de vida. Mas quando as coisas vão mesmo mal, ou seja, quando começo a fazer contas à relação custo-benefício que tem o facto de ter decidido dedicar a minha vida a esta área, há sempre alguma coisa ou pessoa que me reconduz ao entusiasmo primordial, que vem de muito longe, da infância, que surge quando se torna tangível a liberdade na possibilidade de, sobretudo através das artes, nos expressarmos de forma verdadeira, total, e de podermos, através do contacto expressão dos outros, expandir a nossa percepção do mundo (de nós, dos outros, da realidade).

Ao longo dos nove anos em que estes textos foram escritos, tentei com frequência captar esse entusiasmo, tendo consciência da dificuldade que existe em torná-lo partilhável.

Noventa e nove textos e nove anos depois, é um facto que muitas coisas mudaram: foi neste período que a Companhia Mascarenhas-Martins conseguiu passar de um punhado de sonhos e desejos a uma realidade tangível, com uma programação regular, equipa fixa, financiamento da DGArtes, da Câmara Municipal do Montijo (com a qual existe uma sólida parceria que permitiu que pudéssemos programar a Casa da Música Jorge Peixinho), da Junta de Freguesia da União das Freguesias de Montijo e Afonsoeiro, o envolvimento das freguesias de Canha, Pegões, Sarilhos Grandes e Atalaia e Alto Estanqueiro-Jardia e a cumplicidade de entidades como o Ateneu Popular de Montijo ou a Sociedade Filarmónica 1.º de Dezembro.

Nunca perdemos de vista, no entanto, que o que nos motiva é exactamente o mesmo que nos fez começar este trajecto (e acredito que é o mesmo que motiva os nossos parceiros a terem uma relação connosco); o financiamento, as parcerias, os espaços, nunca foram o fim mas o meio, o que importa é o que se faz, e o que nós fazemos é investir na possibilidade de a actividade artística fazer parte do quotidiano.

No meu primeiro texto aqui publicado, afirmava que iríamos arriscar “fazer aquilo de que gostamos” ao fundarmos uma companhia. Hoje diria que o que arriscámos foi fazer aquilo que não poderíamos deixar de fazer, por ter nascido de uma necessidade.

No presente não diria que faço o que gosto, porque em grande parte do tempo isso não corresponde à verdade. Faço aquilo em que acredito, que me parece necessário que seja feito; imagino que esse seja, aliás, um pressuposto também para a Maria [Mascarenhas] e para toda a nossa equipa.

Quem se dedica a causas tem de estar disponível para sofrer. Insistir no valor incomensurável da cultura em tempos pouco dados a idealismos implica viver a contrapelo da realidade, o que não é fácil. Nem cem textos, nem nove anos de Mascarenhas-Martins são suficientes. Continuemos.