1-O Vítor [Alves] tocou à campainha e o Jorge [Silva Melo] apareceu à janela. Podem começar a preparar as coisas que eu já desço, o carro está aberto. Era uma velhinha 4L branca, na qual íamos filmar uma entrevista para o documentário “Os Náufragos” (parte do documentário colectivo “Um Filme Português”), dirigido pelo Vítor, que nos deixou há já alguns anos. Eu fazia o som. Não estava à espera que o Jorge tivesse uma 4L, muito menos que a deixasse destrancada. Claro que sabia muito bem quem era, como imagino que toda a gente que passou pela Escola Superior de Teatro e Cinema soubesse. Apareceu, sentou-se no lugar do condutor e aceitou andar às voltas por Lisboa a falar sobre cinema português, com a sua habitual eloquência, apesar do trânsito, dos semáforos, transeuntes, distracções. A entrevista continuou no Jardim das Amoreiras, onde depois de concluída a rodagem ficámos a conversar ainda sobre cinema, mais especificamente sobre alguns dos realizadores que tinham acabado de começar as suas carreiras com curtas-metragens. Como seria possível aquele homem conhecer tanta coisa, entre o passado, o presente e até aquilo que ainda estava por fazer? Acabámos por cruzar-nos várias vezes, em diferentes contextos; convidou-me para filmar duas edições d’A Voz dos Poetas, na Imprensa Nacional. Tentou envolver-me em mais coisas, o mesmo que fez com tanta, tanta gente. Estou-lhe muito grato por tudo o que ajudou a edificar na cultura portuguesa: no cinema, no teatro, na programação, tradução, edição, crítica.
2-Na passada terça-feira apanhei o barco para Lisboa. Teatro Nacional D. Maria II, cerimónia de atribuição da Medalha de Mérito Cultura do Ministério da Cultura a João Lourenço, Jorge Silva Melo, Luis Miguel Cintra e Maria do Céu Guerra. Fui convidado a falar cinco minutos sobre o Luis, de quem sou amigo e com quem tive o privilégio de trabalhar em três espectáculos nos últimos anos enquanto produtor. Dessa noite retenho, sobretudo, a sensação de amargura destas pessoas que deram as suas vidas a uma causa cujo reconhecimento acaba por ser muito mais teórico do que prático. Atribuir uma medalha é fácil. Difícil tem sido garantir que existem condições para se fazer teatro em Portugal — podia alargar às outras artes, mas uma vez que este domingo é Dia Mundial do Teatro, fiquemos por aqui. Pessoas com uma importância inegável nos últimos 50 anos têm mais ou menos as mesmas queixas que nós: faltam condições, espaços de trabalho, uma política corajosa que valorize esta arte tão frágil pela sua efemeridade.
3-Domingo é Dia Mundial do Teatro. A mensagem de Peter Sellars sublinha a necessidade de existirem espaços de reunião, de escuta, de partilha. Aqui no Montijo, no Cinema-Teatro Joaquim d’Almeida, voltamos finalmente à leitura presencial da mensagem comemorativa deste dia, da autoria de Peter Sellars, com encenação do nosso André Alves. Esta leitura terá lugar antes da última sessão de “MATA”, co-produção do Teatro Estúdio Fontenova connosco que estará em cena também no Joaquim d’Almeida entre sexta e domingo (sexta e sábado 21h30, domingo 16h30). Para haver espaços como aqueles que Sellars refere na sua mensagem, é preciso que cuidemos deles, que os valorizemos no quotidiano, não apenas nas efemérides. É esse o apelo que faço.
À PARTE
Levi Martins
Diretor da Companhia Mascarenhas-Martins