Não raramente, ouvimos romancistas invejar os poetas pela faculdade de em poucas palavras conseguirem expressar ideias, que a eles lhes custa páginas descritivas das mesmas. Mas, pela minha parte também se faz sentir um sentimento contrário. Valha-nos que entre uma e outra sensação, fica-nos o gosto de ambas terem lugar e de poderem concorrer para a necessária elevação cultural do ser humano.
Como sempre, nesta página, tento conciliar o poder dos versos com uma pequena explicação do que esteve na base do poema. Desde logo, porque na sua origem está sempre uma inquietação, que brota mais evidente no verso inicial. Aí reside a verdadeira inspiração. Daí que, neste poema tudo se torna claro quando se diz “sinto as mãos vazias, sem herança para deixar”. Tendo passado a uma situação de reforma (mais bonito o termo de “jubilado”) e tendo toda a minha vida profissional sido feita no domínio da docência, da consultadoria e da gestão empresarial, senti “mágoa da obra talhada que ficou por fazer”. Invejei quem tem a habilidade de deixar qualquer coisa de concreto, de obra física que se eterniza e será marca da sua passagem. Senti “ser fome que me enche as mãos abertas sem nada ter.”
Ao ler este poema numa tertúlia poética, alguém me despertou e quase insinuou, estar presente uma falsa modéstia. Isto porque, sabendo da minha já vasta obra publicada, tudo indicava que melhor herança já tinha lugar na minha vida. Os meus poemas e os meus livros.
Satisfaz-me essa lembrança, mas continuo com esta sensação de “em minhas mãos nem o pó se lhes poisa”. Esse mesmo que poderia ser matéria para “construir colunas de uma qualquer catedral.”
No final de mais um ano, nada melhor que manifestar o desejo de cada um de nós possa ter a certeza de ter herança para deixar. SemMais!
Sinto aos mãos vazias, sem herança para deixar.
Tudo fica nas palavras, na folha que se rasga,
na lembrança vaga de uma passagem,
efémera e ténue, como folha ao vento a esvoaçar.
Esta mágoa da obra talhada que ficou por fazer,
do vazio do caminho por calcetar,
do ferro retorcido a lembrar o meu nome,
de tudo só ter este vazio de uma vida feita,
de tudo saciado me parecer ser fome
que me enche as mãos abertas sem nada ter.
Invejo o carpinteiro da obra tosca
no seu todo imperfeita, no trabalho inacabado
mas a ter lugar, tão real, no seu legado.
Só minhas mãos abertas nem o pó se lhes poisa
para ao menos deixar palavras escritas,
como se fossem colunas de uma qualquer catedral.