Desejo e acção

Recentemente tive a oportunidade de ver um documentário sobre o artista visual Keith Haring (“O universo de Keith Haring”, com realização de Christina Clausen), no qual é possível admirar o prazer de uma prática compulsiva, imparável, o entusiasmo pela possibilidade de agir perante o mundo, com base numa reflexão permanente sobre o lugar da arte.

É muito interessante perceber que Haring, quando tomou consciência de que teria pouco tempo de vida, decidiu acelerar o processo porque considerava que tinha ainda muitas coisas para criar. E, também, que quando o aconselharam a deixar de intervir no espaço público por isso não contribuir para um sentido de escassez da sua obra, ou seja, não contribuir para a valorizar no mercado, rejeitou completamente a sugestão porque o valor daquilo que fazia residia, em grande parte, no facto de estar disponível em muitos locais, para muita gente. É um bom exemplo de como o sentido do que cada um faz não deve ser modificado por uma lógica extrínseca. A lógica de mercado nada tem que ver com a lógica de criação artística livre. Refiro Keith Haring por me parece um bom exemplo da relação entre o desejo e acção: o seu desejo era criar e a sua acção uma consequência desse desejo.

Com tanto ruído à nossa volta, é complicado por vezes percebermos onde reside ainda o nosso desejo, para que consigamos decidir a acção. Penso que o perigo reside por vezes em interpretarmos como desejo nosso aquilo que, por algum motivo, são expectativas dos outros, seja daqueles que nos são mais próximos, seja de uma ideia difusa que parece andar no ar, uma manifestação média dos anseios comuns.

O que tento fazer quando tenho dúvidas é perguntar-me o que continuaria a fazer se tivesse recursos ilimitados. E chego à conclusão de que, tirando alguns aspectos menos estimulantes ligados à burocracia e à gestão, o meu tempo seria sempre dedicado à criação artística, à programação cultural, enfim, a fazer ou estar próximo de quem cria alguma coisa. O desejo, que surgiu quando era ainda muito jovem, conduziu a um conjunto de acções; e as acções, quando relacionadas com o desejo, só o fortalecem, conduzindo a mais acções.

Tenho dedicado algum tempo a pensar no percurso da Mascarenhas-Martins, incluindo a sua pré-história, uma vez que em 2025 a nossa Companhia irá comemorar dez anos. Este percurso tem sido a manifestação prática, em forma de acção colectiva, dos desejos que a Maria Mascarenhas e eu partilhamos desde que nos conhecemos em 2010. A primeira conversa longa que tivemos, de que nunca nos esquecemos, foi exactamente a constatação de como esses desejos, não sendo iguais, eram complementares e poderiam dar origem a um conjunto de acções práticas. E assim tem sido, envolvendo imensa gente, mobilizando recursos, tentando que a nossa acção seja um exemplo de fidelidade à força que a colocou em movimento.