Arrebatamento

1 . O fim das férias é, para muitos, um momento saudoso, como se a vida se cumprisse sobretudo no ócio, na escuta da rebentação ou das cigarras, do tempo sem termo à mesa, em antigas ou novas amizades, amores fugazes, namoros perenes, na celebração da simplicidade, hedonismo sem sofreguidão, no quase nada prenhe de significado. Mas a vida vivida em pleno, o que inclui de forma natural a relação com a cultura, talvez pudesse ser assim o ano todo. Julgo que é para isso que nós, trabalhadores deste sector, vemos tantas vezes como missão o nosso papel, uma vez que aquilo que fazemos tem como base a tentativa de proporcionar, espectáculo a espectáculo, obra a obra, a possibilidade de contacto com esse arrebatamento que só o tempo livre, pois liberto de obrigações, pode garantir.

2. Tenho estado a ler o livro “Faith, hope and carnage”, uma longa conversa entre Nick Cave e Seán O’Hagan, em que a certa altura se fala sobre o sentido de comunhão que o artista australiano considera encontrar apenas na religião os nos espectáculos ao vivo. Essa comunhão é um contraponto à vida que é vivida através de ecrãs, uma vez que nessa vida quase sem participação do corpo é muito pouco provável existir um contacto salutar entre o nosso lado dionisíaco, o qual se relaciona com o subconsciente, com a emoção, e o lado apolíneo, ligado à razão.

3. Não encontro nas redes sociais a causa dos problemas do mundo. Pareceme que aquilo que lá encontramos de mais chocante são apenas sintomas: as caixas de comentários cheias de fel, rancor, desconfiança. Sintomas de uma revolta, de uma frustração relacionada com uma expectativa colectiva, uma promessa por cumprir. O que com frequência me parece é que essa sensação está mais ligada à incapacidade de se destruir um conjunto de ilusões, do que com a realidade efectiva. Como reconheço e admiro nos migrantes, que têm a coragem de mudar quase tudo em busca de uma realidade melhor do que a que parece que lhes tinha sido destinada, existe sempre a possibilidade de imaginarmos uma forma diferente de estar. Talvez seja por isso que tanta dessa frustração lhes seja dirigida, por serem representantes do movimento, por mais que, na verdade, estejam quase sempre sujeitos a condições muito pouco confortáveis.

4. Tenho cada vez mais dúvidas acerca do potencial transformador das artes. Parece-me que o desejo de que tenham esse papel parte, com frequência, da impotência da política enquanto verdadeira arte da coesão social. Acredito, no entanto, que pela repetição do ritual de comunhão, pela prática presencial do contacto com os outros, com a diferença, pela possibilidade que permite de ir escrevendo a história do mundo a partir de impressões fragmentadas, vamos ganhando confiança para, se assim o desejarmos, mudarmos de vida, em vez de nos deixarmos ficar num ressentimento passivo, no qual apontamos aos outros, ao mundo, aquilo que é, na verdade, apenas o resultado da nossa inacção.

Levi Martins – Diretor da companhia Mascarenhas-Martins