Um pouco à maneira da história da sopa de pedra, conta-se uma outra de dois soldados que, a caminho da terra de boleia num fim-de-semana (num tempo já algo muitíssimo remoto), engendraram a forma de comer numa casa de pasto sem nada pagar. Simplesmente, apostaram com o dono em como conseguiriam fazê-lo sem dobrar os braços, o que veio a verificar-se porquanto, sentados frente a frente, de braços bem esticados como se de alavancas se tratassem, um e outro manejavam os talheres e erguiam os copos do oposto num mecânico sobe e desce contínuo até ao esvaziamento completo da comida e da bebida. Assim descrito pode ser difícil de imaginar, pelo que se recomendou a experimentação da receita como agora voltamos a recomendá-la, ou seja, estamos em retoma!
Bonacheirão, o dono não só nada lhes cobrou, honrando a palavra, mas ainda recheou os dois militares com mais farturas da cozinha.
O “Principezinho” de Antoine de Saint Exupéry – livro e autor aqui citados de memória – tem um começo algo confinante, mas de sentido contrário. Fala de um rapazito de seis anos que desenhou o que os outros e sobretudo os adultos identificaram como um chapéu, sendo afinal – naqueles contornos opacos de duas colinas adelgaçadas e alongadas nas extremidades – o traçado de uma jibóia que engolira um elefante.
A criança experimentou o insucesso dos seus esboços artísticos, só gerou incredulidade e acabou por vir a escolher, algo inconformada, a profissão de aviador. E foi nesta qualidade que o escritor, ao serviço da sua pátria, entre a realidade e a lenda terá sido (mas foi mesmo) abatido num voo de reconhecimento por aviões da Alemanha nazi, perecendo para sempre na noite do mar.
O Comité Central do Partido Comunista Português ao decidir, em 2005, a realização de iniciativas de comemoração do 60º aniversário da derrota do nazi-fascismo, assinalou-a então como “um dos acontecimentos marcantes do século XX, promovendo a reflexão e o debate sobre o quadro internacional em que se desencadeou a II Guerra Mundial, valorizando a acção das forças de libertação, da resistência dos povos, o papel dos comunistas e o contributo decisivo da URSS e do Exército Vermelho para libertar a Europa e o mundo do flagelo do nazi-fascismo, combatendo as tentativas de revisão da História e do seu aproveitamento para justificar hoje a sua estratégia agressiva de domínio planetário” (Comunicado de 18 e 19 de Março).
Saint Exupéry fora igualmente um internacionalista, pondo-se do lado da República na guerra civil espanhola. Do lado oposto, do lado de Franco, a Alemanha hitleriana colocou 16 mil homens, e a Itália de Mussolini 50 mil. “Nenhum americano combateu ao lado deles”, ingleses uma “escassa meia dúzia”. Fascistas franceses também não foram além de “um grupo”, e russos apenas “um bando”, para utilizar a caracterização de Hugh Thomas (“A Guerra Civil de Espanha”). Da Irlanda, o número é substancialmente maior, mas fica-se pelos 600. E portugueses “voluntários” (aspas do americano) da “Legião de Viriato”, recrutados e organizados pelo “neutral” António de Oliveira Salazar?: 20 mil, dos quais morreram 8 mil!, segundo a mesma fonte.
O fascismo português não é particularmente conhecido por ter divulgado tais quantidades. Diferentemente do corpo ausente de Saint Exupéry, que fora menino, ou da argúcia dos soldados que engendram soluções para assegurar uma refeição de bolsos vazios – duas histórias de contar -, a história do comprometimento da ditadura portuguesa com o franquismo no que respeita ao envio de contingentes não pôde ir muito para além, numa ou noutra terra, da escassa atribuição de nomes de legionários a ruas e praças. À dimensão daquele compromisso fascista faltaram-lhe, simplesmente, os soldados. Soldados.