Tesouro arqueológico raro em Sarilhos Grandes reabre teorias alimentares

As vestes de um religioso, um ossário com mais de 100 esqueletos, os hábitos alimentares e as doenças são parte de um espólio material de conhecimento raro em todo o mundo.

Terão os navegadores portugueses sido os primeiros a trazer para a Europa a batata, o feijão ou o tomate? A hipótese, que pode rebater a teoria de que tais alimentos chegaram por intermédio dos espanhóis, está a ser aclarada por um grupo de arqueólogos e cientistas que trabalham numa necrópole descoberta numa ermida e suas imediações, que foi escavada durante 12 anos em Sarilhos Grandes, Montijo. É que, em pelo menos dois enterramentos ocorridos em 1470, descobriram-se vestígios de tubérculos. Mas os trabalhos arqueológicos em causa puseram a descoberto outros tesouros: peças de vestuário e ornamentos religiosos encontradas na sepultura de um padre enterrado há mais de três séculos. Um achamento, dizem os peritos, raro e de impacto mundial.

A arqueóloga Paula Alves Pereira, que integra o projeto “SAND – Sarilhos Grandes Entre Dois Mundos”, não tem dúvidas sobre a importância dos vestígios que começaram a ser escavados depois de, em 2008, na sequência de uma intervenção de maquinaria ao serviço da empresa Simarsul (águas e saneamento básico) se terem posto a descoberto alguns locais de enterramentos. “Primeiro temos a registar dois enterramentos anteriores à anunciada chegada da batata à Europa. São enterramentos do século XV (1470) Nesses esqueletos foram detetados vestígios de, por exemplo batata, a qual, diz-se, só teria sido introduzida no consumo humano um século mais tarde. Depois temos as ossadas do padre Gouveia, enterrado em 1704. Trata-se de um um enterramento de um sacerdote da Ordem de Santiago, que conservava restos do hábito, sapatos e um terço em madeira composto por 50 peças. O facto de conservar restos de indumentária (têxtil arqueológico) torna-o num achado extraordinário e raro que será estudado em laboratório”, disse ao Semmais.

 

Escavações permitiram descobrir 42 enterramentos e dez ossários

A importância dos achados arqueológicos na ermida de Nossa Senhora da Piedade e no seu adro é realçada pelo elevado número de ossadas encontradas, fosse nos locais de 42 enterramentos (muitas vezes o mesmo local era utilizado em diversas ocasiões) ou nos dez ossários, sendo que num deles foram já identificados mais de uma centena de esqueletos.

“Os trabalhos já permitiram, por exemplo, saber que se faziam enterramentos sobre enterramentos. Também sabemos que a igreja é anterior ao terramoto de 1755 e que os indivíduos ali sepultados são anteriores a essa data. O facto de termos descoberto um mega ossário, com mais de uma centena de crânios, também pode indicar ter ocorrido alguma epidemia que provocou inúmeras mortes. Além disso, já foi possível identificar diversas doenças e hábitos alimentares”, explicou Paula Alves Pereira.

Entre as doenças já detetadas, os arqueólogos sublinham casos de sífilis e escorbuto. Esta segunda doença, associada à má nutrição, pode também indiciar que alguns dos residentes na área de Sarilhos Grandes tenha participado nas viagens de navegação até, supostamente, à América, de onde são provenientes os alimentos cujos vestígios foram detetados.

A arqueóloga responsável pelos trabalhos revelou ainda que já foi possível concluir que parte da população daquela zona consumia elevadas quantidades de peixe e moluscos.

 

Sepultura do religioso traz à luz do dia um “achado raro”

Acerca do religioso da Ordem de Santiago, que teria 37 anos quando foi sepultado, assumem particular relevo os vestígios das roupas, uma vez que é muito raro as mesmas sobreviverem tanto tempo e manterem um estado de conservação considerado bom.

“São artefactos muito raros. É um achado único e que inclui, entre outras coisas, as contas de um rosário com que o corpo terá sido sepultado”, refere ao nosso jornal a arqueóloga. Importantes são igualmente os vestígios de uma camisa de linho, a gola e o capuz de uma veste que o religioso envergaria até aos pés e, até, um sapato.

“O estado de conservação deste vestuário é bem melhor do que, por exemplo, o das ossadas”, diz Paula Alves Pereira. Tal facto pode ser explicado pela quantidade de cal que terá sido colocada sobre o corpo. A cal, explicou a arqueóloga, pode ter ajudado a preservar as vestes e a decompor o corpo (apesar de haver cabelo no crânio).

Com os estudos laboratoriais ainda em curso, sabe-se que todas as ossadas deverão voltar a ser enterradas nos locais onde foram encontradas. Esse foi o compromisso assumido com a Diocese de Setúbal, quando esta autorizou as escavações na ermida e onde também já foram encontrados vestígios (azulejos, por exemplo) hispano-árabes.