Maestro Jorge Salgueiro em entrevista ao Semmais

Natural de Palmela, é diretor artístico do coro da Associação Setúbal Voz desde 2017. O maestro Jorge Salgueiro lembra ao Semmais que a cidade tem como ícone a maior cantora de ópera da história de Portugal, mas não tem recursos para a honrar ao lado de Bocage, por isso pretende fazer a diferença.

 

O Coro Setúbal Voz estreou, recentemente, a banda sonora do filme “Terje Vigen”, qual é a sensação?

Trata-se de um formato que nos agrada. O nosso posicionamento artístico parte do assumir e da tomada de consciência do nosso corpo e da sua presença transposta numa personagem ou numa entidade intermédia entre a pessoa e a personagem. Não é a pessoa quotidiana que entra na moldura do palco, ou da cena. Desta forma gostamos de dar atenção a aspetos que não apenas a música. O cinema traz alguns elementos que são muito estimulantes, entre eles a dramaturgia.

 

Tem outro grande projeto, recente, em torno de Carmen de G. Bizet com a comunidade cigana de Setúbal, fale-nos desta iniciativa …

Na Associação Setúbal Voz (ASV), estabelecemos uma temática anual. O objetivo é que os três projetos da ASV (Coro Setúbal Voz, Ateliê de Ópera de Setúbal e Companhia de Ópera de Setúbal) procurem inspiração e concebam projetos dentro da temática que a direção da associação aprova sob proposta da direção artística. Para 2022, a temática sugerida foi a multiculturalidade. Nesse sentido, sendo Carmen uma personagem cigana e sendo esta obra de G. Bizet, provavelmente, a ópera mais popular da história da música, pareceu-nos inspirador repensar a música de Carmen à luz da música cigana e projetar uma interpretação que envolvesse o canto lírico com intérpretes vocais e instrumentais ciganos.

 

E candidataram a obra ao Programa de Apoio a Projetos…

Concorremos ao Programa de Apoio a Projetos – Criação e Edição da Direção Geral das Artes, apesar de sabermos que as hipóteses de conseguir esta ajuda são muito baixas, porque na ASV não temos experiência, nem uma equipa que se possa dedicar por inteiro à elaboração destes projetos. São milhares de candidaturas, temos noção disso, mas o objetivo é sempre aprender. O nosso projeto tem um valor global de 100 mil euros, envolve imensa atividade musical convencional, mas também uma presença constante nos bairros da Freguesia de São Sebastião, que identificámos como importantes para abraçar esta iniciativa, como o 2 de Abril, 25 de Abril, 20 de Julho, Bairro Afonso Costa, Quinta de Stº António, Pote d’Água e Manteigadas.

 

Como surgiu a Associação Setúbal Voz?

A ASV nasceu como suporte a um coro: o Coro Setúbal Voz. A força de caráter, a união do grupo, a paixão pelas artes, a cumplicidade fraterna foi tornando o grupo cada vez maior e mais forte o que levou ao alargamento para outros projetos: o Ateliê de Ópera e a Companhia de Ópera. Eles decorrem da identidade do coro que pensa as suas intervenções musicais sem ignorar que temos o corpo, como expressão física e temos a mente humana, como uma expressão de pensamento, como também a necessidade de melhorar as prestações vocais e a presença em cena. Por isso, neste momento, temos um leque extraordinário de colaboradores: os professores de canto André Henriques, Carina Matias Ferreira, Diogo Oliveira, Inês Constantino e Xana Simões, o pianista e maestro João Malha e a coreógrafa Iolanda Rodrigues.

 

Tanto o ateliê como a companhia foram fundados por si…

Essas valências surgem na sequência de uma procura de identidade para a instituição no contexto da cidade de Setúbal. As artes performativas contemporâneas, a música erudita e o canto lírico são as nossas bases.  A cidade sadina tem como ícone a maior cantora de ópera da história de Portugal, Luísa Todi, mas não tem recursos humanos e conhecimento para fazer jus à sua maior referência artística ao lado de Bocage. Estamos a tentar construir isso dotando a cidade de estruturas compatíveis. Refiro-me a construir públicos, formar cantores, criar experiência em saber fazer. Ajudar a pensar as artes e tentarmos abrir janelas sobre as possibilidades de construir arte e, através dela, influenciar o devir dos tempos pelo pensamento. As referências humanas da cidade podiam ser navegadores marítimos, cientistas, políticos, filósofos… mas não, são uma cantora e um poeta que se mantêm como ícones dos setubalenses ao longo de mais de dois séculos.

 

E como diretor artístico, que trabalho tem desenvolvido em Setúbal?

O meu objetivo tem sido tentar ajudar a construção de uma sociedade mais livre, mais exigente, mais analítica, mais fraterna e mais consciente. A arte tem um papel fundamental no desenvolvimento humano, um chavão que se diz, mas que muitas vezes não tem real reflexo no pensamento e na ação por falta de estruturação no pensamento.

Iniciei funções com o Coro Setúbal Voz, desde então apresentámos 12 espetáculos. Posso destacar “Se7e Prazeres Capitais”, “Ritual Gótico” que estreámos em Palmela, e “Purgatório, a Divina Comédia”, em coprodução com o Teatro O Bando, que esteve duas semanas no Teatro Nacional D. Maria II.

A mais recente criação do Coro Setúbal Voz que estreou no Film Fest 2021 e é uma sonorização com uma reinterpretação dramatúrgica do filme “Terje Vigen”, de 1916.

Em fevereiro de 2020 foi fundado o Ateliê de Ópera de Setúbal com o espetáculo “Édipo, o Rei Lagarto”, ainda nesse ano fizemos o evento “Nessun Dorma”, em Setúbal e Palmela. A mais recente criação do ateliê foi estreada na Igreja S. Sebastião e chama-se “Penitências à Virgem das Águas”.

Por último, refiro os espetáculos da Companhia de Ópera de Setúbal, com a qual pretendemos ter duas criações por ano. Começámos em julho de 2020, com “Os Fantasmas de Luísa Todi” e ainda em dezembro do mesmo ano, estreámos “Vingança, uma ópera do tempo da Todi e da Madonna”. Este ano estreámos a 3.ª criação “A Nave dos Diabos”, com a qual estivemos no Festival de Canto Lírico de Guimarães e pretendemos ainda estrear, em finais de novembro, a primeira criação a pensar nas crianças. Chama-se “Animais, Bichos e Criaturas”.

 

Nota-se uma grande ligação à região, onde já desenvolveu vários projetos, é natural do distrito?

Sim, nasci em Palmela e sou também fruto das suas tradições musicais da região. Mas tenho também uma relação afetiva com Setúbal que eu penso ter começado em criança, com as visitas ao Mercado do Livramento quando ia comprar peixe com o meu pai. Em Setúbal estudei trompete na Academia Luísa Todi, onde 15 anos depois fui professor de iniciação musical. Fui também durante vários anos maestro no Coral Infantil de Setúbal e fiz parte de uma direção do Festival de Música de Setúbal. Além disso gosto da cidade, da presença do rio e do mar e, em especial, da sua luz que está diretamente relacionada com a presença da água e das longas áreas planas junto a ela. Mas confesso que tenho uma certa resistência a um certo espírito bairrista, mesmo sabendo da importância da identidade prefiro ir tentando aprender a amar as pessoas e o planeta como um todo.

 

Compõe regularmente desde os 14 anos, hoje é autor de mais de 300 obras, como surgiu esta paixão?

Sei, exatamente, o momento em que se fez o clique, estávamos num ensaio do concerto para clarinete, de Carl Maria von Webber, e um movimento na linha dos baixos provocou-me um espanto que procurei posteriormente reproduzi-lo, compondo música, como se fosse algo abstrato. Seguiu-se assim o vicio de compor, numa primeira fase apenas para mim. Depois, por volta dos 17 anos, ocorreu algo a que hoje acho graça. Dirigia a Orquestra Juvenil dos Loureiros e como ainda tinha vergonha de me assumir como compositor criei um anagrama a partir de Jorge Salgueiro, “Louis Roger Gaje”, tinha até uma biografia própria e o anagrama servia de pseudónimo. A primeira grande apresentação de uma obra de fôlego ocorreu no Teatro da Trindade com a minha primeira Sinfonia “A Voz dos Deuses”. Antes já tinha apresentado outras obras, mas este foi um momento muito importante, para mim.  Hoje compor é como respirar, um dia sem abrir uma partitura é um dia incompleto.