Imigrantes, mães solteiras ou sozinhas e casais jovens recorrem cada vez mais às ajudas. Até nas igrejas os donativos são cada vez mais insignificantes: Num mês e meio a paróquia de Nossa Senhora da Conceição recebeu 742 moedas de… um cêntimo.
A fome e a incapacidade de pagar as despesas correntes estão a aumentar na nossa região. Instituições como a Cáritas Diocesana e a Paróquia Nossa Senhora da Conceição, aquela que tem maior número de habitantes na capital do distrito, confirmam que são cada vez mais os pobres. Procuram alimentos, mas também ajuda para pagarem rendas, água, gás e cuidados de saúde.
A miséria aflige grandes comunidades de imigrantes e, de um modo cada vez mais acentuado, cidadãos portugueses que há um ano, mesmo em plena pandemia, ainda conseguiam suportar as despesas, mas que agora se veem obrigados a recorrer à caridade.
“Se quisesse ser irónico, diria que não há fome nem dificuldades, pois há tanta gala, tanta jantarada e tantos automóveis de luxo, ou pelo menos caros, a serem vendidos. No entanto, o que se vê nas ruas são pessoas com muitas dificuldades. E não são apenas aqueles que antes já eram pobres. Hoje, na paróquia de Nossa Senhora da Conceição, já atendemos, infelizmente, muita gente com habilitações académicas superiores. Até advogados”, disse ao Semmais o padre Constantino Alves, responsável por um serviço de ação social na freguesia de São Sebastião, em Setúbal, uma zona que é conhecida por ter habitantes com grandes níveis de pobreza e desemprego.
“Não consigo quantificar, porque não é esse o objetivo da paróquia, mas é uma evidência que hoje há muito mais gente carenciada. Em Setúbal temos uma realidade de pobreza estrutural. As pessoas nascem pobres, crescem pobres e reformam-se pobres. Quando se reformam continuam com falta de tudo. De alimentos, produtos de higiene, medicamentos, tudo. Depois há um problema muito sério que diz respeito às mães solteiras ou aquelas mulheres que foram abandonadas pelos maridos e companheiros com filhos menores. Para completar temos também, e cada vez mais, casais que estão a passar pelas dificuldades causadas pelo desemprego ou que estão sujeitos ao trabalho precário”, referiu ainda Constantino Alves.
O quadro negro traçado pelo padre da paróquia de Nossa Senhora da Conceição é replicado quase na íntegra pelo responsável pela Cáritas Diocesana, Domingos Sousa. “Há muita gente a entrar no limiar da pobreza. Não me é possível quantificar. Não possuo, para já, esses elementos, mas sei que, a título de exemplo, que despesas que anteriormente eram de 3.000 euros mensais, são agora de 5.000 euros e mais”, disse.
Domingos Sousa afirma que o objetivo da Cáritas é continuar a apoiar as cantinas sociais e ajudar, enquanto for possível, todos os que têm dificuldades a suportar as despesas correntes. “É uma tarefa muito difícil, porque as famílias estão cada vez mais pobres. Há consequências gravosas”, acrescentou.
Moedas pretas no ofertório espelham a realidade
Constantino Alves tem uma forma curiosa de quantificar as dificuldades por que passam os fiéis da sua paróquia: conta as moedas pretas (as de menor valor) que dão entrada nas caixas do ofertório após cada serviço religioso.
“Posso garantir que no espaço de um mês e meio tivemos no ofertório 742 moedas de um cêntimo (7,42 euros), 432 de dois cêntimos (8,64 euros) e mais de 300 moedas de cinco cêntimos. Também tivemos moedas de outros valores, como é normal, mas a grande quantidade das moedas menos valiosas ilustra bem as dificuldades por que passam as pessoas”, reiterou.
Para o padre, que tem o hábito de visitar alguns dos bairros mais frágeis da cidade, a pobreza já não é algo que se possa quantificar contando o número de sem-abrigo. “Há muitas situações em que entram dois salários dentro da mesma casa. Mas depois, se a renda ou a prestação for de 500 euros, essas famílias, sobretudo se tiverem um filho, já não conseguem fazer face às despesas. A situação tem vindo a agravar-se. Ainda não podemos falar numa avalanche, mas há cada vez mais casos novos. Agora está tudo a piorar, mas o pior há de chegar nos próximos meses”, alertou.
A paróquia de Nossa Senhora da Conceição possui, desde há oito anos, uma clínica dentária aberta à população da sua área. Essa clínica, onde trabalham mais de duas dezenas de voluntários, já terá tratado, sem custos, mais de um milhar de pessoas. O padre diz que até neste aspeto da prestação de cuidados de saúde se nota o empobrecimento da população: “Há, para além de todos aqueles que nos procuram para ver como podemos ajudar a comprar medicamentos, uma média de dez novas famílias que solicitam apoio para tratamento dentário. É revelador”.
“Em Setúbal há muita gente que não consegue pagar as despesas mensais da casa. Pro- curam-nos para ver como podemos ajudar a pagar a água e a luz. Esse é um problema que se agrava diariamente numa cidade onde, nos últimos 40 anos, não houve o cuidado de criar mais habitação social. Resolveu-se, parcialmente, o problema de meia dúzia de famílias na Quinta da Parvoíce, mas a maior parte dos pobres que lá estavam, por lá permanecem. Pelo menos tão pobres quanto antes”, acrescentou Constantino Alves.
4,4 milhões abaixo do limiar da pobreza
No dia 17 celebrou-se o Dia Mundial para a Erradicação da Pobreza. Diversas organizações reuniram-se para darem conta dos problemas que têm sido detetados. No final, de acordo com os dados compilados pela Pordata, concluiu-se que o país terá atualmente cerca de 4,4 milhões de pessoas cujos rendimentos ficam abaixo do limiar da pobreza (554 euros mensais). Este número diminui para 1,9 milhões quando aos seus rendimentos se lhes somam os apoios sociais. Luísa Louro, diretora da Pordata, diz que Portugal é o segundo país da União Europeia com mais pessoas a viverem em más condições materiais. Percentualmente, a pobreza atinge 18,4 por cento da população depois de serem distribuídos apoios sociais.