Dediquei uma parte das férias a fazer arrumações. E uma parte considerável das arrumações a tentar perceber onde acomodar a biblioteca que, ao longo dos anos, a Maria Mascarenhas e eu fomos deixando crescer desmesuradamente. Só uma pequena parte corresponde a livros que comprámos, até porque durante muito tempo não tínhamos propriamente margem para grande coisa.
A Maria herdou uma rica e extensa biblioteca de uma madrinha que sempre cultivou o gosto pelas artes e que, entre páginas de romances ou peças de teatro, deixou notas, textos de sua autoria, poemas, uma espécie de diálogo com as obras com que tinha contacto. Eu fui também acolhendo livros de várias origens, como por exemplo de um dos grandes amigos da minha mãe, dos tempos da Faculdade de Letras, cuja biblioteca terá chegado ao ponto de ter de ser partilhada com outras pessoas.
Para além destas generosas ofertas, sempre que alguém faz mudanças consulta-nos para perceber se não queremos ficar com aqueles livros que estão a apanhar pó nas estantes e já não cabem. E acaba sempre por vir para o Montijo mais uma ou outra caixa. Tenho consciência que não será possível ler todos estes livros. São tantos que mesmo que não fizesse mais nada, já não ia ter tempo para os ler.
Quando faço arrumações acabo sempre por chegar à frustrante constatação de que há imenso que vai ficar por fazer. Mas não é por isso que deixo de querer acolher mais e mais livros, talvez por valorizar imenso aquilo que representam: a possibilidade de, a qualquer momento, aceder ao que alguém decidiu que era suficientemente importante para merecer ser registado em palavras, frases, versos, parágrafos, capítulos. Tantos pensamentos e emoções transformados em formas partilháveis com os outros, tanta vontade de transpor as barreiras do tempo.
Gosto do facto de cada livro permitir uma relação silenciosa, individual, com as ideias e emoções de quem os escreveu; é como se pudéssemos entrar num território secreto, íntimo, numa dimensão que vai para lá dos limites físicos do real. Há dois mundos: o real, em que imperam leis como a da gravidade; e o da imaginação, cujos limites não se conhecem por existir ainda o potencial de nos surpreendermos, de nos deixarmos surpreender.
Enquanto o real continua a desencantar-nos nos seus equívocos, falhas de comunicação, lutas de poder, na sua galopante embriaguez mascarada de racionalidade, o mundo que os livros encerram continua prenhe de lucidez. Os livros devolvem-me a esperança, a imaginação da humanidade é melhor que a humanidade, o que demonstra que o potencial existe e exige que o tentemos concretizar.
Levi Martins – diretor da Companhia Mascarenhas-Martins