Uma aula de cidadania para João Afonso

O vereador João Afonso e alguns dos seus actuais colegas no PSD Montijo têm tentado por diversas vezes aproximar-se de temas caros à extrema-direita: a tentativa de relacionar insegurança com imigração; a defesa de valores pretensamente tradicionalistas (a tríade “Deus, Pátria, Família” lembra alguma coisa?); o permanente levantar de suspeitas acerca do funcionamento das instituições; enfim, tudo o que possa contribuir para sublinhar a ideia de que existe uma diferença entre “nós” e “eles”, sendo “nós” os impolutos, os competentes, os escolhidos, e “eles”, enfim, os causadores de todos os males do mundo. A conclusão natural desta divisão é de que devam ser estas pessoas, os “nós”, a ter autoridade para determinar o que todos, “nós” e “eles”, devemos fazer. Quem, como eu, não se reconhece nestas divisões acaba por ficar um bocado confuso, embora no meio da confusão se possa verificar uma coisa com clareza: por detrás deste tipo de discurso está uma ideologia antidemocrática, antiquada, com base numa lógica de manipulação bem conhecida por quem tem algumas noções de História, sobretudo do século XX.

Depois de já ter disparado para quase todo o lado, eis que João Afonso decidiu esta semana manifestar-se contra uma exposição que pode ser vista até 23 de Novembro na Galeria Municipal do Montijo: Strange Habits, de Xavier Garrett. Escreveu, entre outras coisas, que nesta exposição “faz-se o culto da marginalidade em detrimento da cultura e do saber”, referindo que nas obras expostas “[d]iaboliza-se a escola, a autoridade policial e judicial, cria-se a ideia do Homem Branco racista esclavagista do oprimido Homem Negro”. Não que o tenha escrito directamente (porque era capaz de cair mal), mas o que está implícito na sua apreciação das obras de Xavier Garrett é de que o ideal talvez fosse terem ficado escondidas no seu atelier, longe da vista dos incautos cidadãos montijenses, que devem ser protegidos, naturalmente por João Afonso e o PSD Montijo, da “propaganda woke” e das mensagens da “extrema esquerda”. Este tipo de discurso é curiosamente coincidente com o que era usado no Estado Novo, em que a população portuguesa era carinhosamente protegida de escutar discos de José Afonso, ler livros de Alves Redol, assistir a peças de Bernardo Santareno, ler poemas de Natália Correia, enfim, uma lista infinita de obras provavelmente “woke” para a época.

“[A] educação para a cidadania visa contribuir para a formação de pessoas responsáveis, autónomas, solidárias, que conhecem e exercem os seus direitos e deveres em diálogo e no respeito pelos outros, com espírito democrático, pluralista, crítico e criativo.” Cito este excerto das linhas orientadoras da Educação para a Cidadania, que podem ser consultadas no site da Direcção-Geral da Educação. O espírito democrático implica termos a capacidade de lidar com formas de ver o mundo diferentes das nossas, por vezes radicalmente diferentes. É evidente que João Afonso tem todo o direito à sua opinião acerca da exposição de Xavier Garrett, tal como eu tenho direito de expressar a minha opinião acerca da sua — felicito-o, aliás, pelo facto de ter entrado na Galeria Municipal e ter-se interessado por algum tipo de criação artística, pois na Casa da Música Jorge Peixinho ainda não tivemos oportunidade de o receber uma única vez. O que não tem, nem alguma vez terá — e é este o sumário desta breve aula de cidadania —, é o direito de impedir que outros, “nós” ou “eles”, tenham acesso a obras incómodas, provocadoras, em relação às quais possam até acabar por dizer, no café ou nas redes sociais, que não deviam existir.

Levi Martins – diretor da companhia Mascarenhas-Martins