Uma das incógnitas que se vai colocar ao mundo que se segue à pandemia é a que retrato geoestratégico iremos assistir a médio prazo, com o retrocesso à Europa das mil velocidades, da hecatombe britânica e do desabar do todo-poderoso Estados Unidos, e seus pares do norte ocidental.
A história dos vários tempos demonstrou à sociedade duas verdades absolutas: A primeira é que nada é imutável nas fricções geopolíticas e, a outra, é que há sempre um reerguer após as guerras. Sempre assim foi. Para não irmos tão longe, lembremo-nos das duas guerras mundiais, o “New Deal”, após a Grande Depressão, e as mais recentes crises das dívidas soberanas e da bolha imobiliária, que quase nos deitou por terra.
Já para não falar, bem ao caso, da cruzada contra as baterias e os vírus, da peste negra à cólera, da tuberculose à gripe espanhola e, mais recentemente, a malária e a SIDA, nos anos 80, com milhões e milhões de vidas perdidas.
Mas há um reflexo bem mais evidente que a história nos ensina sobre o espaço vital, esse paradigma criado por Ratzel, o qual, aplicado no nosso tempo, faz-nos pensar na perda de poder e de influência, quase anunciados, do Ocidente face ao mundo oriental. No comando deste tabuleiro estão a China e a Índia, países com conflitos internos conhecidos, como o Tibete, Taiwan, ou Caxemira, mas muito convergentes no plano externo, contra um Ocidente que se desmancha a si próprio.
Para muitos especialistas, esta aliança regional dos dois gigantes asiáticos, a que se junta no plano estratégico, uma Rússia ambiguamente perigosa, não deixa de ser uma ameaça constante aos valores ocidentais, com uma crise latente de desnorte e de liderança que tem alimentado um populismo inaudito.
Não é esquizofrenia. Do nosso lado, estamos a perder o espaço vital dos valores, enquanto que, do outro, adensa-se o espaço vital da expansão económica e financeira, construída por potências demográficas cada vez mais influentes, com sociedades assimétricas e povos disciplinados pela força. É uma evidência e pode ser uma escalada perniciosa.
Enquanto a “guerra fria” se aguentou do equilíbrio do medo, esta nova vaga não vai ter barreiras nem fronteiras. A China é hoje um colosso financeiro que detém – conjuntamente com o Japão o país mais ocidental do Oriente – parte substantiva da dívida americana.
À primeira vista, pode ser que este texto não tenha nada a ver com a crise da Covid 19, mas tem a ver, certamente, com o que se seguirá – e estava anunciado há algumas décadas – no puzzle crescente de uma nova Ordem Mundial. Não é em vão que, num primeiro embate, a China se tenha sobreposto à União Europeia no apoio a países intensamente ‘atacados’ pelo vírus, como é o exemplo da Itália, e está igualmente a fazê-lo nas terras do Tio Sam.
Não estou certo se será melhor ou pior, mas sei que nada será como dantes nesta encruzilhada, onde o caldo de culturas pode extravasar sem darmos conta disso, acrescido do notório enfraquecimento da sociedade ocidental e das vulnerabilidades das suas lideranças.
O vírus, ‘plantado’ no mercado de Wuan, na China, pode mesmo vir a ser o inesperado rastilho para que a China cumpra a ambição – agora retocada na Era pós-moderna, com a globalização à cabeça – de voltar a ser imperial.
Raul Tavares
Diretor