Reportagem Semmais: Linha da frente no Garcia de Orta

Tudo mudou no interior do hospital Garcia de Orta, por onde tem passado o maior número de doentes infetados com a Covid 19 na região. Pelo olhar de um enfermeiro experiente, espreitámos os cantos e recantos desta unidade, onde se tenta travar e combater o ‘inimigo’.

 

Quando a pandemia ainda se mostrava muito longe, aparentemente isolada em terras do oriente, na cidade de Wuan, os profissionais de saúde, no Garcia de Orta, em Almada, o principal hospital da região, já anteviam a sua chegada, e em força.

Estávamos em fevereiro, e as televisões vertiam imagens que mais pareciam cenas de filme. Nesta altura, diz ao Semmais o enfermeiro Eduardo Bernardino, “estar nas urgências é como andar com uma arma apontada à cabeça a toda a hora”, sem saber quando a mesma “vai disparar”. A única certeza “é a de que a arma se encontra carregada e pronta a disparar”.

As imagens cinematográficas materializaram-se rapidamente perante a realidade das semanas seguintes, a partir de 2 de março, quando foi conhecido o primeiro caso registado em Portugal. Já aqui ao lado, em Espanha (primeiro caso registado a 31 de janeiro) e, em Itália (primeiro caso conhecido a 20 de fevereiro), os doentes Covid abafavam a tranquilidade hospitalar.

Segundo as fontes do Semmais as primeiras medidas de contingência no Garcia de Orta foram tímidas, e tomadas ainda em fevereiro. Foi criado na urgência um espaço dedicado a pessoas com sintomatologia, tipo febre e tosse e quadro epidemiológico relevante, nomeadamente se os doentes em causa tinham viajado há menos de 14 dias e para zonas onde a doença já estava declarada. “Nesse período, foi decido converter um gabinete de triagem para esses casos suspeitos, com lotação apenas para uma pessoa”. Muitos profissionais pensaram que seria “uma situação rápida e suave”, como aconteceu com o Ébola em Portugal. “na altura estava convencido que seria uma coisa tipo gripe A”, confessa o enfermeiro Bernardino, que é também mestre em Gestão da Saúde.

O adensar do peso de doentes, com Almada e Seixal, a liderarem e a fazerem crescer os números de infetados na região, obrigou a uma constante adaptação interna, por entre os corredores, salas e saletas daquela unidade hospitalar. Foi criado um novo espaço Covid, aumentando a capacidade para quatro pessoas, que passou rapidamente para uma lotação de seis. Já havia equipamento de proteção pessoal, os famosos kits 0,1 e 2, usados no combate ao Ébola, e passou a ser um tormento o contato com a linha 24. “O atendimento era muito demorado, horas para se obter indicações da linha de apoio médico, e noutros casos ativava-se uma equipa para vir buscar o utente e conduzi-lo ao Curry Cabral para que lá lhe fizessem o teste à Covid 19”, lembra Eduardo Bernardino.

 

 “Espaços Covid” extravasaram capacidades da unidade ao limite

As rotinas internas levaram uma volta de 180 graus, caíram as férias para todos os profissionais de saúde, numa altura em que o país se preparava para a declaração do Estado de Emergência. O número de doentes Covid disparou ao mesmo tempo que as idas às urgências com outro tipo de necessidades de saúde caíram a pique, mais de 45 por cento, segundo estimativas hospitalares.

No Garcia de Orta de hoje, mês e meio após o início do surto, que se transformou em epidemia e, passou em vertigem a pandemia declarada, os chamados “espaços Covid” extravasaram capacidades ao limite. Nos dias que correm é possível atender e tratar 21 casos suspeitos em simultâneo, fazem-se testes ao vírus na própria unidade e todo o hospital foi gradualmente rearquitetado.

Corre-se um amplo circuito interno de transferência de doentes, apoiados por seguranças, e cumpre-se uma etiqueta gradual, com equipas e serviços Covid devidamente preparados e em escala contínua. Neste circuito, podemos encontrar doentes infetados, mas sem gravidade, os que estão em estado mais crítico e ainda os que se encontram em estado mais graves.

As várias Unidades de Cuidados Intensivos não têm tido sossego, foram todas elas adaptadas desde o deflagrar da crise e após a escalada do número de doentes que acorrem ao Garcia de Orta. Também os blocos operatórios foram reinventados e adaptados para o que os médicos e enfermeiros classificam de “cirurgia Covid”. E mesmo as urgências, que há um mês possuíam uma mera sala de reanimação, passou a dispor de uma área própria para a “reanimação Covid”, outra para a reanimação de via aérea Covid.

A par desta linha da frente, onde se joga, ao minuto, a decisão, não raramente, da vida e da morte, o Garcia de Orta possui também uma zona completamente dedicada à realização de testes de rastreio à infeção e de decisão clínica sobre os vários destinos a dar a cada doente, desde o tratamento em casa, o internamento ou, nos casos mais graves, o envio para os cuidados intensivos.

 

Máscaras fazem úlceras na pirâmide nasal e nas orelhas

Com os profissionais de saúde em alerta máximo, e num frenesim de passos de segurança, devidamente assinalados a cada esquina do interior da unidade hospitalar, pode ver-se, em muitos deles, úlceras de pressão na pirâmide nasal e nas orelhas, provocadas pelos vincos das máscaras. Ali passa-se mais tempo equipado do que o contrário. E todos os doentes no serviço de urgência, Covid e não Covid, são obrigados a usar aquele equipamento de proteção. Fica esta imagem do enfermeiro Eduardo Bernardino: “Neste local, em ambiente hospitalar somos todos suspeitos de Covid. A guerra começou oficialmente e está longe de acabar. Os generais reúnem-se com frequência e estes exércitos da saúde continuam a lutar”.

E para poderem continuar a estar na frente deste combate, sobretudo nas zonas mais críticas, médicos e enfermeiros parecem mesmo ‘guerreiros’ ao serviço de uma guerra contra um inimigo traiçoeiro e invisível. Passaram a usar fardetas descartáveis, de utilização única, mas também bata, máscara P2, óculos, cógula (túnica de manga larga, normalmente com capuz), duplo par de luvas, proteção de sapatos e fato completo.

O medo, esse, começa a toldar as mentes. “Epá… afinal isto é mais grave do que se julgava há um mês atrás”, atira. Muitos profissionais deixaram as suas famílias, afastaram-se dos seus filhos, mulheres e maridos para poder trabalhar em isolamento. “A tristeza acaba por surgir, mas o sentimento mais profundo é cuidar dos doentes, foi para isso que nos formámos”, diz ao Semmais Eduardo Bernardino, e acrescenta: “Agora, digo-lhe ninguém estava à espera disto, ninguém aprende a lidar com uma pandemia num curso de base”.