Nos idos de março

Já não me consigo lembra exactamente como começou. Mas lembro-me, e certamente nunca mais me esquecerei do cheiro. Do cheiro a medo.

Dizem que os cães sentem o cheiro do medo. Desta vez os humanos sentiram-no. Todos.

De repente o mundo ganhou um novo cheiro. Daquele cheiro que só se cheirava nos filmes de terror ou de catástrofes. Daqueles muito bons que nos faziam acreditar no fim do mundo.

Não é que tenha acreditado no fim do mundo. Mas acreditei seguramente que o mundo de muita gente poderia acabar. E acabou. Temia pelos meus familiares. Pelos meus amigos. E por mim, claro, que eu sou altruísta, mas não ao ponto de me ver a agonizar num hospital quase sem respirar.

E assim senti-me confinado. Nem sei se conhecia a palavra. Mas a partir daí, nunca mais a esqueci. Nem eu, nem os restantes 10 milhões de confinados.

O mundo passou a ser visto com outras cores. O que antes era banal, assumido e desinteressante, passou a ser extraordinário.

E aquele beijo que dávamos aos nossos pais e avós, de uma forma tão desprendida, impedidos de o dar, passou a uma barreira física e emocional intransponível. E o que todos sofremos por isso. Seria possível que um simples abraço (o seu impedimento) nos fizesse sofrer tanto?

 

O mundo sabia que, confinado, pararia. De repente era sempre como quando chegamos tarde a casa.   Não havia lugares para estacionar, na medida em que todos os lugares estavam ocupados. Não porque os nossos vizinhos tivessem chegado do trabalho mais cedo, mas porque nem sequer foram para ele. Há dois meses que não tiravam o carro do estacionamento.

De repente deixou de ter piada meter-me com os meus amigos sportinguistas ou portistas. O Sporting e o porto não perderam. Não porque tivessem ganho, mas simplesmente porque não jogaram. E, extraordinário, eu nem queria saber disso. Nada importava. Só o Covid19

De repente as notícias não eram vistas para saber se o PSD tinha subidos nas sondagens, se o Benfica tinha contratado um avançado ou se o governo tinha aumentado o Salário Mínimo Nacional. Não. As notícias eram um momento de catarse nacional onde íamos carpir mágoas com o número de mortes diárias e novos casos de Covid-19 nas últimas 24 horas. E cada número novo era uma rajada de metralhadora contra o nosso débil sistema nervoso.

Para quem gosta de desportos radicais, de repente ir às compras passou a ser o mais difícil desporto semanal. Arriscado.  Muito arriscado. Lembrei-me quando a SIDA apareceu e o sentimento era igual. Era quase como fazermos sexo sem preservativo. Uma autêntica “Roleta Russa.”, só que agora não era por culpa nossa, mas porque, caramba, tínhamos de viver.

Foram tempos, que ficarão para sempre marcados na nossa memória como so tempos do papel higiénico. Vá lá saber-se porquê, o mundo elegeu o papel higiénico como o bem mais precioso. Penso que doravante as universidades irão estudar esse fenómeno, mas enquanto não o fazem, nunca perceberei como é que um vírus tão letal, morre às mãos de um simples sabonete do LIDL ou do Minipreço. Nem sequer exige que seja um DOVE ou outra marca qualquer mais elaborada. Qualquer sabonete. Isso é que me deixava mesmo inquieto nos meus pensamentos.

Agora, noutra vida, em Maio de 2020, até já vou a restaurantes, meto gasolina, ando de carro e atendo clientes e penso, como era difícil a vida, nos “idos de Março” de 2020 e penso, não nos deixou saudades e não queremos uma segunda vaga desse cheiro…a medo.

UM CAFÉ E DOIS DEDOS DE CONVERSA
Paulo Edson Cunha
Advogado