Foi um incidente que fez o escuteiro abraçar a militância política e daí não mais parou. Discreto e competente, Ricardo Mourinho foi o braço direito de Centeno no Governo, com quem tem grande cumplicidade. Nunca esqueceu as raízes e promete continuar a respirar política.
Com o sentido de justiça e solidariedade metido nos genes, e uma educação orientada para assunção dos desafios e das responsabilidades, foi nas vivências do escutismo até aos 20 anos de idade, que Ricardo Mourinho encontrou parte dos seus caminhos.
Em casa, o pai António Carlos, gestor de recursos humanos no setor privado, e a mãe Maria Vitorina, jurista e técnica superior da Administração Regional de Saúde, deram-lhe o conforto do afeto e as bases que o fizeram homem. “Os meus pais foram uma grande influência. Sempre me orientaram para a assunção dos desafios e das responsabilidades não apenas em termos pessoais e profissionais, como para com os outros, com a sociedade”, diz ao Semmais.
O ex-secretário de Estado nasceu em Setúbal, no Hospital S. Bernardo, poucos meses depois do eclodir da Revolução de 25 de Abril de 1974. Frequentou a primária no Montalvão e as secundárias Bocage e Sebastião da Gama. Tempos de aprendizagem e amizades e ligações longas. É o próprio que o afirma: “Conheci professores fantásticos, e fiz muitos amigos com os quais mantenho ainda hoje uma ligação.
Mesmo sem ser muito crente, foi nos escuteiros que ganhou as doses certas de “espírito de entreajuda e de amor ao próximo”, ao mesmo tempo que o ajudou na formação da autonomia de pensamento. Foi nessa caminhada de jovem escuta que deu de caras com a atividade do primeiro Prelado sadino, D. Manuel Martins, que o marcou de forma intensa. Acabou por ser, segundo diz ao Semmais, o rastilho para formatar a sua raiz ideológica de esquerda, sobretudo pela forma como o Bispo de Setúbal manifestava “o seu amor ao próximo” e a forma como este “sempre esteve com aqueles que menos tinham”. “Tudo isso influenciou a construção dos meus ideais de esquerda”, atira.
Aos dezasseis anos, já com o ‘bichinho’ a mexer, abre-se à política partidária. No âmbito de um processo disciplinar com outros colegas do agrupamento de escutas, por “umas travessuras próprias da idade”, e enquanto o processo não foi arquivado, ganhou tempo para outras andanças. “Nessa altura, estava a começar a campanha para as Presidenciais de 1991 e Mário Soares era recandidato. Um amigo (sobrinho da antiga vereadora socialista da câmara de Setúbal, Paula Costa) desafiou-o a participar. Foi o empurrão para um percurso que se iniciava ali.
Por isso diz que “o gosto da política começou cedo”. E cedo percebeu que “era mesmo aquilo que queria fazer”. Logo de seguida filiou-se na Juventude Socialista (JS) e, quanto completou 18 primaveras, ingressou nas fileiras do partido da rosa.
Ricardo Mourinho chegou a conhecer pessoalmente o histórico líder socialista Mário Soares. “É uma referência maior na vida política nacional e na minha. Marcou muito o socialismo moderno como o defendo: um papel importante do Estado na sociedade, sempre no pleno respeito pela democracia e pela liberdade individual enquanto força criadora”, proclama.
Desde o episódio dos escuteiros, que deixou aos 22 anos, a política passou a escorrer no pensamento e na ação, da JS ao PS, e mesmo no ISEG, onde se licenciou, e onde percorreu os patamares do associativismo estudantil.
A dupla com Mário Centeno numa equipa feliz
A partir de 2010, já se antevia um futuro auspicioso para o ainda muito jovem Ricardo Mourinho. E o ex-ministro das Finanças Mário Centeno também o vislumbrou. “Conheci o Mário Centeno quando regressei ao Departamento de Estudos do Banco de Portugal em 2010”, recorda. Por essa altura, já tido sido adjunto do secretário de Estado do Orçamento, Fernando Pacheco, num Governo de António Guterres.
A ligação a Centeno é muito simples. Mourinho trabalhou diretamente com o ex-ministro no Banco de Portugal e daí, como sublinha, “nasceu uma relação de profundo respeito profissional, intelectual e de grande confiança”. Essa e outras funções acabariam por o afastar da política por um longo período. Mas, em 2014, o conturbado período da crise financeira e a situação económica difícil que o país atravessava, trouxe um novo chamamento. “Considerei que era altura de voltar a participar ativamente”.
Numa sessão de esclarecimento do PS, a atual secretária-geral adjunta dos socialistas, Ana Catarina Mendes, apresenta-o a António Costa, e traça-se o caminho seguinte: “A Ana disse ao líder do partido que eu era um jovem quadro que me tinha afastado há muito da vida política e, depois de termos trocado algumas palavras, António Costa disse, simpaticamente, que contava comigo”, relembra.
E como o destino raramente troca as voltas, não muito tempo depois, Mário Centeno, que tinha sido convidado por Costa a coordenar um grupo de economistas para preparar um cenário macroeconómico que serviria de base ao programa do PS, convida-o a integrar a equipa.
O resto, como refere o próprio, é uma história bem conhecida. Em 2015 é eleito deputado pelo Círculo Eleitoral de Setúbal, e já na em funções parlamentares, ele e Centeno, estiveram “lado a lado” na votação que derrubou o governo PSD/CDS. E também estiveram juntos na discussão das propostas de políticas com o PCP, BE e Verdes, que permitiram os acordos políticos em que assentou o governo da “gerigonça”. Nessa sequência não havia muito para adivinhar: quando Mário Centeno foi convidado para ministro levou-o consigo como adjunto e com a tutela do Tesouro e das Finanças. “Aceitei de imediato”, afirma Ricardo Mourinho.
Considerado por amigos, camaradas e até adversários como “muito competente e discreto”, lembra que durante esse período Centeno foi sempre “igual a si próprio”. “Nunca mudou, foi sempre exigente, analítico, rigoroso, profundo e desafiador”, acrescenta. No seu caso, diz Mourinho, a liderança do ex-ministro, que fez o todo maior que a soma das partes, fê-lo “ultrapassar aquilo que julgava ser o meu limite”. E assim aconteceu com toda a equipa.
A máxima do primo Mourinho: “Ter sorte dá muito trabalho”
Mesmo com a cabeça virada para o todo nacional, Ricardo Mourinho nunca perdeu de vista o seu cantinho geográfico. E afirma que a península de Setúbal, no contexto da Região de Lisboa e Vale do Tejo, “mereceu e deve continuar a merecer” uma atenção especial pelas suas especificidades. E não tem dúvidas de que nos últimos quatro anos, “foi uma das regiões que viu uma melhoria mais significativa das condições de vida com a reposição de rendimentos e criação de postos de trabalho”.
Enquanto membro do Governo, diz Mourinho, trabalhou em vários dossiers com impacto sobre a região e de grande importância estratégica. E relembra alguns: a preparação do processo de desafetação para venda dos terrenos da Margueira, em Almada, “que tem um potencial enorme de criação de uma nova centralidade na margem sul do Tejo”; mas também o processo de desenvolvimento das condições para que se possa avançar com a alteração do contrato com a ANA para a construção do novo aeroporto do Montijo, bem como o lançamento dos concursos para a expansão do Porto de Sines, que “permitirá o desenvolvimento do sul do distrito”.
O ex-secretário de Estado Adjunto e das Finanças é primo direito do ‘special one’, José Mourinho ganhou estatuto primeiro no mundo do futebol e é, também, um orgulhoso setubalense. “Nunca tive qualquer constrangimento” por via desse parentesco, diz à reportagem do Semmais. E acrescenta: “Até gerou algum interesse sobre as diferenças e semelhanças das nossas personalidades”.
Centeno, apelidado como “o Ronaldo das Finanças”, numa alusão às conquistas do jogador de futebol. Sobre o primo José Mourinho, diz: “Tenho imenso orgulho de ser primo do Zé, do trabalho fantástico que tem feito nas maiores equipas mundiais de futebol. Admiro o empenho, o profissionalismo e a competência que põe no seu trabalho. É dele a máxima que ‘ter sorte dá muito trabalho’, que é uma frase que repeti muitas vezes”.
E deixa claro: “Nas funções que desempenhei foi sempre uma inspiração, porque trabalhei empenhadamente e coloquei todo o meu saber ao serviço de Portugal e, por isso, estou certo de que ele (José Mourinho) também tem orgulho no trabalho que fiz em nome do nosso país”.
CAIXA 1
Para já, “não” à corrida autárquica
Com as Autárquicas do próximo ano a aproximarem-se, Ricardo Mourinho diz estar disponível para essas batalhas, mas longe de qualquer candidatura à sua cidade-berço, porque a gestão autárquica “exige competências e características que nunca desenvolvi”. Contudo, sabe bem que a cidade de Setúbal “precisa de um rumo diferente, que privilegie o desenvolvimento mais harmonioso, que a prepare para os desafios da transição climática e da digitalização, num quadro de sustentabilidade do orçamento municipal, que permita não onerar tanto os setubalenses”.
CAIXA 2
Da música a um bom sushi
Fã de música rock, Mourinho ainda gosta de tocar guitarra. “Durante os últimos anos, a prática deteriorou-se, mas agora tenho muito espaço para melhorar”. Também gosta de ler sobre música, porque o processo criativo fascina-o. Economia e política são dois vetores de leitura preferidos. “Retiro real prazer e não o faço por mera obrigação profissional. Do mais, segue-se literatura diversa, mesmo o romance. Para trás, nestas andanças governativas, ficou a culinária. Diz ter jeito, sobretudo na preparação de um bom sushi.