O Natal dos ucranianos residentes na região segue as tradições do país de origem. Não se come carne nem derivados do leite. O trigo, que simboliza a riqueza, e o mel, sinónimo de felicidade, predominam.
Mesa farta e devoção religiosa. Esses são os ingredientes dos católicos ucranianos para a noite de Natal. Na região de Setúbal a comunidade local, talvez porque a maioria já ali reside há algumas décadas, habituou-se aos hábitos nacionais e passou a celebrar a 25 de dezembro em vez de se reunir a 7 de janeiro. A comida é, no entanto, a tradicional do seu país, assim como boa parte do cerimonial.
“O Natal ucraniano tem variações de zona para zona. A base é a mesma, mas depois, conforme a região, há alterações. Nada de muito significativo, uma vez que os rituais religiosos são sempre os mesmos para os católicos”, começou por explicar ao Semmais o padre Ivan Petliak, da Diocese de Setúbal.
Em Portugal há cinco anos, Ivan Petliak diz que começou a celebrar o Natal a 25 de dezembro, tal como os paroquianos seus compatriotas, há três anos. Trata-se, afinal, de uma adaptação aos usos e horários locais. “Não altera a mensagem religiosa. As famílias e os amigos continuam a reunir-se”, diz.
Essas reuniões, que se iniciam com a ceia do dia 24, caracterizam-se pela fartura à mesa e pela disponibilidade em receber sempre mais alguém: “Na minha região, próximo da Polónia, deixamos sempre um lugar vago à mesa. É para lembrar os que já partiram, porque o Natal também serve para lembrar os mortos. Mas também há espaço para quem se apresenta. Convido sempre os amigos porque não quero que ninguém fique sozinho e, como eu, muitas outras pessoas fazem o mesmo. Sobretudo agora nesta época de guerra, em que há muita gente que não consegue ter a família reunida”.
A guerra é, precisamente, um dos motivos que leva Nathalia Melnik, residente em Évora, a não celebrar o Natal este ano. “A milha família, a minha família e o meu neto, voltaram para a Ucrânia. Eu estou sozinha e sem vontade para festas”, diz a mulher que é enfermeira de formação, mas que em Portugal tem trabalhado nas limpezas.
Mesmo desafiada por amigos e compatriotas, Nathalia diz que “o momento não é para festas”. “Todo o dinheiro que ganho mando para a Ucrânia, porque é lá que tenho toda a família. Não há gás, nem luz, nem nada…”, acrescenta.
O jantar caracteriza-se pela ausência de carne e de produtos lácteos. Essa é uma decisão religiosa. No entanto, se faltam, por exemplo, o peru ou o cabrito, encontram-se em abundância o peixe, os legumes e os cereais.
“Há ucranianos que moram em Portugal há mais de 20 anos. Essas pessoas já tiveram cá filhos, que por cá estudam, compraram casas, criaram empregos, contraíram empréstimos. São pessoas que estão totalmente integradas na sociedade portuguesa. No entanto, quando chega o Natal, fazem sempre questão de celebrar à moda da Ucrânia e das regiões onde nasceram. É por isso que mantém as tradições alimentares e religiosas”, afirma o padre que celebra o culto em Setúbal e Montijo.
Um dos hábitos mais curiosos que se podem encontrar durante a refeição da Consoada tem a ver com a deposição, sob a mesa, no chão, de uma quantidade de feno sobre o qual se co- locam depois uma ou duas toalhas bordadas. “A palha significa o local onde Jesus nasceu, numa manjedoura. As toalhas representam as pessoas da família, sejam elas vivas ou já mortas”, explica Ivan Petliak, voltando a salientar a importância que na data é atribuída a todos os falecidos.
Depois, tal como os católicos do Ocidente, também os ucranianos recorrem à chamada árvore de Natal, a qual é profusamente decorada. Simboliza, dizem, a alegria e a união que se pretendem na época, com partilha e troca de presentes.
É, no entanto, sobre a mesa que o Natal ganha especial esplendor. A dona da casa onde se faz a celebração tem por obrigação confecionar 12 pratos diferentes e característicos da região onde nasceu. No centro, conforme conta Ivan Petliak, coloca-se sempre o kalatch, que é uma espécie de pão adocicado com sementes de papoila.
O padre Ivan explica que o primeiro prato a ser servido é o kutia, feito à base de trigo cozido, que simboliza a riqueza, e mel, que é um símbolo de felicidade, mas também com amêndoas, sementes de papoila e sultanas. “Só se começa a comer depois de aparecer a primeira estrela no céu. É essa estrela que revela o nascimento de Jesus. Mas antes cumprimentam-se. O chefe da família é sempre o primeiro a servir-se”, explica.
Depois do kutiá servem-se os restantes pra- tos. Nenhum tem carne. Come-se o golubtsi, que tem vegetais, couves recheadas, o borsch, que é uma sopa feita à base de beterraba e que também é característico da Roménia, Rússia e Polónia, o verenyky, uma massa cozida e com recheios variados, o pierogi, uma espécie de pastéis de massa que são cozidos, assados e fritos e recheados com queijo, frutas ou batata. Este prato, muito consumido nas localidades ucranianas que fazem fronteira com a Polónia, poderá ter origem asiática.
Terminada a refeição, deixam toda a comida não consumida sobre a mesa. É, dizem, mais uma forma de homenagearem os defuntos, cujas almas, se quiserem, podem então deliciar-se com alguns dos prazeres terrenos.
A evocação dos mortos prossegue, na manhã seguinte, durante a celebração religiosa. “Passamos a mensagem do Príncipe da Paz, para que todos entendam que devemos permanecer sempre unidos”, sintetiza o padre Ivan.