A ignorância é uma página em branco que não admite discussão e teme o debate que fragiliza a sua autoridade; a autoridade que advém de nada saber. É assim, ponto. Por isso, ao longo da História as bibliotecas, os edifícios e as estátuas foram, e são, vítimas preferenciais da ignorância totalitária. Assim foi com os autos de fé e com os índexes que colocaram fora de lei o conhecimento, e assim é, ainda hoje, com a censura que cerceia o conhecimento e a criatividade em nome de religiões ou, de ideologias.
A ignorância tem uma lógica própria, uma lógica simples e aparentemente sem falhas: todos os Homens são mortais, Sócrates é homem logo é mortal. Mas ai!… Pode ser um erro crasso agir com base em pressupostos simplistas, mas no caso de António Vieira é ingratidão.
António Vieira não foi um colonialista, foi um homem do seu tempo, um visionário, e acima de tudo, um orador extraordinário. Ao contrário de muitos outros pregadores da sua época é, ainda hoje, um gosto lê-lo. Imagino o que seria ouvi-lo perorar do cimo do púlpito em apaixonado sermão… As palavras, cada palavra, pensadas à medida, as ideias arrumadas numa hierarquia perfeita. Um mestre da língua portuguesa, mais que isso, um padre que foi perseguido na sua época por se opor à escravatura e à corrupção. Não é só o seu português que é actual são muitas das suas ideias aliás, a Santa Inquisição perseguiu-o porque estava incomodada com as críticas que ele verbalizava relativamente igreja e aos poderosos. O sermão de Santo António aos Peixes, além de um clássico da literatura é uma crítica cerrada à sociedade da época com as suas vaidades, as corrupções, e os inquestionáveis poderes que subjugavam os “peixes” mais humildes.
O que diria António Vieira dos vândalos que grafitaram a sua estátua? Imagino-o, como no Sermão de S. António aos Peixes, a dizer : “…peixinhos ignorantes e miseráveis, quão errado e enganoso é este modo de vida que escolhestes” ou, talvez a perdoar num encolher de ombros. Afinal, o que é uma estátua esborratada para quem passou pelos cárceres da Inquisição?
Caminho enganoso deveras, já que muita da energia posta a destruir estátua(s) poderia ser canalizada para lutar conta a escravatura moderna já que 30 a 40 milões de pessoas são, hoje, vítimas da escravatura. Os mercados de escravos não são “coisa do antigamente” são uma realidade arrepiante dos nossos dias. Sabia que 25% dos escravos, de hoje, são crianças? Quantos dos produtos que estão nas prateleiras das nossas lojas resultam de trabalho escravo? Agricultura, minas, pescas, indústria têxtil, construção civil sectores que usam o trabalho forçado para colocar nas nossas prateleiras produtos a preços acessíveis e nós consumidores queremos ignorar, quase sempre, a dura realidade que se esconde por detrás dos produtos ditos “baratos”.
CRÓNICAS DISTO E DAQUILO
Catarina Tavares
Dirigente Sindical