Sem médicos, sem enfermeiros e sem dinheiro, Garcia de Orta em perigo de colapso

As urgências geral, de pediatria e de obstetrícia sobrevivem à custa de pessoal contratado, mas, muitas vezes, não especializado. Médicos e enfermeiros queixam-se de falta de diálogo com a administração e o Ministério da Saúde.

Todos os serviços de urgências do Hospital Garcia de Orta, em Almada, estão em perigo de rutura. Faltam médicos, enfermeiros e pessoal de apoio, mas também parece não existir dinheiro para novas contratações e nem sequer para continuar a servir ‘ceias’ aceitáveis ao pessoal que faz serviço noturno. Com o inverno a aproximar-se e sendo previsível o aumento do número de doentes, tudo poderá tornar-se ainda mais complicado.

Depois de a urgência pediátrica noturna ter encerrado há cerca de um ano, por não haver médicos em quantidade para assegurar o serviço, é agora a vez de a urgência geral dar sinais de falta de pessoal, isto já depois de o mesmo ter acontecido na obstetrícia.

“A situação que se vive começou há quase dois anos. O conselho de administração, seguindo as indicações do Ministério da Saúde e da Troika, suspendeu as contratações de novos médicos. Alguns reformaram-se. Outros, muitos, mudaram-se para o privado, que paga bem melhor. Entretanto os serviços começaram a sentir dificuldades, a colapsar. Estão quase todos a rebentar”, explicou ao Semmais o enfermeiro Paulo Pinto.

“Esta situação de enorme carência de pessoal, em todos os setores, apesar de o hospital ter cerca de 3.000 funcionários, só se resolve, em minha opinião, quando for criada uma comissão, com representantes de todas as partes envolvidas, nomeadamente da administração e do ministério, mas obviamente também com médicos, enfermeiros e pessoal auxiliar. Pessoas que reúnam mensalmente e que façam o levantamento correto das necessidades dos serviços de urgência”, disse.

No Garcia de Orta existem médicos e enfermeiros que reclamam da falta de meios financeiros e até de comida para quem trabalha durante a noite. “Falta tudo. Falta pessoal em todo o lado e falta material básico, tal como luvas, aventais, resguardos. Muitas vezes estas faltas não são comunicadas, porque também faltam as reuniões da administração com as chefias”, contou outra fonte ligada aos serviços.

Paulo Pinto diz, por sua vez, que o bar que antes existia para fornecer alimentos ao pessoal destacado para o turno da noite, fechou por determinação da Troika. Os funcionários passaram então a receber uma caixa com quatro ou cinco peças (um pão, manteiga ou marmelada, uma peça de fruta, um ovo cozido). “Por vezes comida sem qualidade alguma. Já reclamei algumas vezes”, contou.

 

Sem médicos especialistas, contratam-se não especializados

Muitos dos médicos destacados para as urgências já não têm capacidade para trabalhar de acordo com as necessidades. “O estado de exaustão é visível”, diz João Proença, do Sindicato dos Médicos da Zona Sul. Há médicos e enfermeiros, afirma, que trabalham durante a noite mesmo tendo mais de 50 anos, a idade pela qual podem recusar o turno noturno. Assim, na ausência do pessoal necessário, a administração tem recorrido à contratação de não especializados o que, de acordo com os sindicatos, não favorece o atendimento dos doentes. “Falta gente em todas as especialidades”, sintetiza o sindicalista.

“Há pessoas a abandonarem o Garcia de Orta por divergências com os conselhos de administração sucessivos, os quais são agora preenchidos por ativos sem a experiência necessária”, disse ao Semmais uma enfermeira que solicitou o anonimato. “A situação da Covid agravou tudo. Parte dos doentes não Covid está praticamente abandonada. A gestão hospitalar, que passa impune porque ninguém pede contas, faz com que cada vez mais haja médicos conceituados, com referências, a pedirem para sair”, acrescentou.

O Garcia de Orta serve uma população estimada em cerca de 350 mil pessoas e é o hospital de referência na margem Sul. Atualmente a urgência geral atende uma média diária de 300 pessoas, enquanto a pediatria atende cerca de 200 crianças. Nesta especialidade, já encerrada durante a noite, é frequente assistir-se a pais desesperados que, por falta de meios financeiros, não conseguem levar os filhos para os serviços de urgência pediátrica em Lisboa. “É que aqui, no Garcia de Orta, a partir das 20h, não há nada que se possa fazer”, sintetizou o enfermeiro Paulo Pinto.

 

Caixa

Doença de administrador trava diálogo

Uma das principais reclamações dos médicos e enfermeiros que prestam serviço no Garcia de Orta é a da falta de diálogo com a administração. Dizem que as nomeações são feitas sem ter em conta a experiência do pessoal mais antigo e de nem sequer se realizarem reuniões de trabalho com as chefias. Este cenário, afirmam, é agravado pelo facto de o administrador principal estar doente há vários meses, situação que o leva a longos períodos de ausência, não existindo quem por ele tenha efetiva capacidade de decisão.