Idosos procuram salvar património que os jovens parecem ignorar

A poucos dias de comemorar dez anos de classificação pela UNESCO, o Cante Alentejano sobrevive no distrito através da atividade dos grupos que, apesar de envelhecidos, ainda batem à porta das escolas para tentarem recrutar jovens.

Ninguém sabe com exatidão quantos alentejanos residem no distrito e, mais concretamente, nos concelhos da península. “São muitos” é a resposta escutada de cada vez que se pergunta. Muitos, mais de duas dezenas, são também os grupos corais de Cante Alentejano existentes nos nove concelhos. Funcionam como uma espécie de cordões umbilicais que ainda prendem aqueles que, desde as décadas de 1960 em diante, migraram para as imediações da capital em busca de trabalho. Uma ligação que, contudo e de acordo com algumas pessoas ligadas ao setor, parece ter os dias contados. É que os jovens, diz-se, não querem saber da tradição. “Querem outras músicas”, garantem os mais antigos.

As modas velhinhas, que antes eram entoadas de casa para os campos e vice-versa, ecoam hoje em alguns salões das muitas coletividades que subsistem na península de Setúbal. Uma ou duas vezes por semana é possível encontrar grupos que raramente ultrapassam as duas dezenas de pessoas e que, num ritmo muito característico, cobrem de nostalgia uma idosa legião de seguidores. “Os novos? Gostam muito, mas não querem nada com isto. Temos muita dificuldade em arranjar gente nova”, diz Francisco Doce, o vice presidente do Grupo Coral Alentejano, os Amigos do Barreiro.

Oriundos da Vidigueira, de Castro Verde, Entradas, Vale Vargo, Ferreira do Alentejo ou Alfundão, entre muitas outras localidades, quase todas do distrito de Beja, os cantadores são agora 18. “Já fomos 28, mas uns morreram e os jovens não se fixam. Temos de levar a nossa cultura para a frente com os que cá estão”, atira Francisco Doce, recordando que só aderiu aos Amigos do Barreiro depois de se ter reformado, de ter largado o trabalho como operador de gruas. “Quando estou aqui a cantar, que eu canto e encanto, é como se estivesse a recuar ao tempo em que se cantava nas tabernas do Alentejo”, confessa.

Pouco esperançosa é, igualmente, a visão do ensaiador do Grupo Coral Voz do Alentejo, sediado em Boa Água, na Quinta do Conde, Sesimbra. Ao nosso jornal Inácio Baião conta que dos 18 atuais intérpretes (já foram 23), quase todos têm idades compreendidas entre os 59 e os mais de 80 anos. “Temos pessoas de idade muito avançada e nem o facto de termos três senhoras faz com que os jovens nos procurem. Para ser sincero, não sei se dentro de uma ou duas décadas não estaremos a lamentar a extinção de muitos dos grupos que se dedicam ao Cante”, diz.

Grupos tentam recrutar novos membros

Dez anos depois de o Cante Aentejano ter sido classificado como Património Cultural Imaterial da UNESCO, o Grupo Coral Etnográfico Amigos do Alentejo do Feijó é um dos baluartes da tradição no concelho de Almada. “Representamos nesta zona cerca de 60 mil alentejanos”, refere o dirigente João Mira, seguro de que a atividade do grupo não irá ser afetada pelo envelhecimento dos integrantes, uma vez que “somos os mais convidados, com cerca de 40 atuações por ano”.

João Mira reconhece, no entanto, o distanciamento cada vez mais acentuado dos jovens relativamente às tradições dos pais. “Há menos gente a aderir e nota-se muito a falta de novos elementos. Neste momento temos 24 pessoas a cantar, mas algumas já estão na casa dos 80 anos. Temos um elemento com 24 anos, mas é difícil atrair outros do mesmo escalão etário”, salienta.

O presidente do Grupo Coral Voz do Alentejo, Sérgio Marcelino, conta ao Semmais que existe um projeto que já se revelou útil para cativar jovens. “O ‘Cante nas Escolas’ foi uma ideia que começámos a desenvolver e que parecia ter condições para vingar. Numa primeira tentativa, ainda antes da Covid, fizemos uma parceria com a antiga Escola Básica Integrada da Quinta do Conde, mas houve uma série de problemas com o antigo diretor. Agora estamos a tentar retomar o projeto e até temos 20 miúdos que gostam. Até já foram cantar à Presidência da República. Os nossos ‘Benjamins’ estão a progredir e este ano, quando das comemorações da classificação, vão atuar com o grupo principal e também com o Grupo Coral 1º de Maio, do Bairro Alentejano, na Quinta do Anjo, em Palmela”.

Ainda sobre a primeira tentativa do projeto “Cante nas Escolas”, o ensaiador do Voz do Alentejo refere também que “até havia adesão dos mais novos”: “O problema é que, depois, à medida que foram crescendo, muitos jovens optaram por deixar o Cante, Outros, porque não tinham boas notas escolares, foram retirados da atividade pelos pais. Não havia compatibilidade de horários entre ensaios, explicações e as idas aos centros de estudos”.

Há três anos os grupos que existiam nas Paivas e em Paio Pires, ambos no concelho do Seixal, optaram por se fundir. Criaram a União dos grupos de Paivas e Paio Pires, encontrando assim uma solução para a falta de efetivos. “Agora somos 16 pessoas a cantar. Das Paivas, grupo que foi formado há cerca de 50 anos, só já seis é que estão vivos”, conta António Borda de Água, natural do Torrão, no concelho de Alcácer do Sal.

“Manter esta atividade é uma maneira de manter vivo o Alentejo. Se o Cante morrer, morre um pouco do Alentejo. Nós não queremos isso”, diz o integrante do grupo que, à semelhança de outros, lamenta o alheamento dos jovens. “No Alentejo ainda se vai arranjando alguém, mas aqui está bem mais difícil. Até já pusemos papéis por aí, mas não há maneira dos mais novos se agarrarem a isto”, refre ainda o mesmo responsável associativo, lembrando que o mais “jovem” dos cantores da União de Grupos Paivas, Paio Pires tem 55 anos e o mais antigo já vai nos 81.

Inácio Baião refere também os prejuízos que a Covid trouxe para os grupos de cantadores da península. “A pandemia ajudou a matar alguns grupos, não sei quantos, mas foram alguns. Outros, que não se dissolveram nessa ocasião, acabaram por ficar demasiado tempo parados e isso teve reflexo na atividade. É sempre mais difícil retomar o ritmo quando as pessoas já são de idade”, refere.

A subsistência dos vários grupos que se dedicam ao Cante na Península só é possível devido aos apoios das câmaras e das juntas de freguesia.

“Sem as autarquias não fazíamos nada. Não temos sede própria, mas ensaiamos num clube ao qual pagamos renda. O dinheiro vem dos apoios que nos são dados pela câmara, que também é fundamental para que nos possamos deslocar. É também com esses auxílios que vamos comprando o que faz falta para o grupo”, refere João Mira.

O mesmo se passa com o Grupo Coral Alentejano os Amigos do Barreiro. Francisco Doce lembra que os ensaios são feitos nas antigas instalações de uma velha escola cedida pela autarquia, que é igualmente determinante quando se trata de financiar as viagens.

 

Empurrados pela fome e pelo desemprego

As origens do cante na península de Setúbal remontam à diáspora. Numa primeira fase, ainda no final da década de 1950 e no início da seguinte, quando se iniciou a industrialização dos campos do Alentejo, ocorreu uma imensa crise, com muitas pessoas a terem de abandonar a região por terem ficado sem trabalho.

“A maioria dos que se viram sem meios de subsistência acabou por se instalar nos concelhos da península, onde estavam a surgir grandes empreendimentos industriais. Mais tarde, ainda antes de 1974, verificou-se nova e mais grave crise. A extrema pobreza fez com que muitos mais alentejanos, sobretudo do Baixo Alentejo, abandonassem as suas terras e viessem para a região”, diz Sérgio Marcelino.

“Agora são essas pessoas e os seus descendentes que mantém vivo este património. A classificação do Cante serviu para despertar consciências, sobretudo nos jovens que ainda estão no Alentejo. É preciso, no entanto, alertar outros, nomeadamente artistas consagrados, para o facto de o Cante não ser um modo de auto promoção. O Cante não utiliza instrumentos musicais e não pode ser adulterado”, refere.